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FABULARIO PORTUGUÊS

O cam disse que lhe prazia d’ello muyto.

Amdando assy anbos, o llobo esguardou e vio que o cam avia o pescoço pelado, e preguntou-lhe[1] por que avia o pescoço pelado. O cam lhe disse que o sseu senhor o tijnha leguado o dya porque nom mordesse a gemte, e aa noute ho leixaua andar ssolto, por lhe guardar a casa. Quando o lobo ouuyo que legauam o cam de dia, disse:

— Nom quero hir com tiguo. A mym praz mays viuer em mynha liberdade e comer[2] mall, que bem comer e sseer /[Fl. 29-r.] sempre seruo.

E loguo sse partio do cam.

E este emxempllo sse concorda com este vesso que diz: Ne ssyt alterius[3].




Diz este poeta per este emxemplo, querendo-nos amaestrar, que o homem proue que viue em ssua liberdade he mays rrico que o rrico quando viue e he seruo alheo. E o homem que seruo he nom he ssenhor de ssy meesmo, nem he senhor do que tem; ho homem que he em ssua liberdade, e em ella viue, nom póde cobrar ssemelhamte tesouro; e quem seruo sse faz, esperando de sseer rrico, tal como este se póde chamar proue. Ha liberdade nom sse póde comprar por todo o auer do mundo; ha liberdade he hũa graça celestriall, a quall passa todalas rriquezas do mundo.


XLI. [Os membros do corpo e o ventre]

[Fl. 29-v.][C]omta este poeta este emxemplo e diz que os pees e as mãaos acusarom o uentre, dizemdo:

— Nós ssenpre ssosteemos grande afam em andando de cá e de llá em muytos trabalhos; e todo nos este uemtre come, e numca sse farta nem comtenta; e elle está ocçioso e nom faz nem dura trabalho. Nom lhe demos de comer!

E assy o fezerom. Ho uemtre começou a auer fame, e disse aas mãaos e aos pees:

— Amygos, dade-me de comer, ajudade-me, ca eu mouro com ffame.

As maãos e os pees diserom que lh’o nom queriam dar, e dizian-lhe:

— Sse tu queres comer, toma affam, assy como nós fazemos; d’outra guysa, nom queremos que[4] comas quanto nós trabalhamos.

  1. No ms., por extenso, preguntou, sem a abreviatura usual.
  2. No ms., por engano, comemer, com reduplicação da syllaba.
  3. Tradução do latim: Não sejas (servo) de outro.
  4. No ms. lê-se: «nom queremos que co que comas». Vê-se que o copista ia a escrever que comas, escrevendo primeiramente só que co, e parando; mas repetiu que adeante, e escreveu comas por inteiro.