Página:Obras completas de Luis de Camões III (1843).djvu/210

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Que lhe não fique o peito congelado,
Por mais e mais que seja exprimentado?

Democrito dos deoses proferia
Que erão sós dous; a Pena, e o Beneficio.
Segredo algum será da phantasia,
De qu’eu achar não posso claro indicio.
Que se ambos vem por não cuidada via
A quem os não merece, he grande vício
Em deoses sem-justiça e sem-razão.
Mas Democrito o disse, e Paulo não.

Dir-me-heis, que s’este estranho desconcêrto
Novamente no mundo se mostrasse,
Que por livre que fosse e mui experto,
Não era d’espantar se m’espantasse.
Mas que se ja de Socrates foi certo
Que nenhum grande caso lhe mudasse
O vulto, ou de prudente, ou de constante,
Exemplo tome delle, e não m’espante.

Parece a razão boa; mas eu digo
Deste uso da Fortuna tão damnado
Que quanto he mais usado e mais antigo,
Tanto he mais estranhado e blasphemado.
Porque, se o Ceo, das gentes tão amigo
Não dá á Fortuna tempo limitado,
Não he para causar mui grande espanto,
Que mal tão mal olhado dure tanto?

Outro espanto maior aqui m’enleia,
Que com quanto Fortuna tão profana
Com estes desconcertos senhoreia,
A nenhuma pessoa desengana.
Não ha ninguem, que assente, nem que creia