Página:Obras completas de Luis de Camões III (1843).djvu/213

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E mungir-lhe do leite que bebesse,
Quão bem-aventurado que sería!
Que por mais que a Fortuna revolvesse,
Nunca em si sentiria maior pena,
Que pezar-lhe de a vida ser pequena.

Veria erguer do sol a roxa face,
Veria correr sempre a clara fonte,
Sem imaginar a ágoa donde nace,
Nem quem a luz occulta no Horizonte.
Tangendo a frauta donde o gado pace,
Conheceria as hervas do alto monte,
Em Deos creria simples e quieto,
Sem mais especular algum secreto.

D’hum certo Trasilao se lê e escreve
Entre as cousas da velha antiguidade,
Que perdido grão tempo o siso teve
Por causa d’huma grave enfermidade;
E em quanto, de si fóra, doudo esteve,
Tinha por teima, e cria por verdade,
Qu’erão suas, das naos que navegavão,
Quantas no porto Píreo ancoravão.

Por hum Senhor mui grande se teria,
(Além da vida alegre que passava)
Pois nas que se perdião não perdia,
E das que vinhão salvas se alegrava.
Não tardou muito tempo, quando hum dia
Huncrito, seu irmão, que ausente estava,
Á terra chega; e vendo o irmão perdido,
Do fraternal amor foi commovido.

Aos Medicos o entrega, e com aviso
O faz estar á cura refusada.