Página:Obras completas de Luis de Camões III (1843).djvu/215

Wikisource, a biblioteca livre
216

Qualquer quieto, humilde e doce estado,
Onde com minhas Musas só vivêra,
Sem ver-me em terra alheia degradado;
E alli outrem ninguem me conhecêra,
Nem eu conhecêra outro mais honrado,
Senão a vós, tambem como eu contente;
Que bem sei que o serieis facilmente:

E ao longo d’huma clara e pura fonte,
Qu’em borbulhas nascendo, convidasse
Ao doce passarinho, que nos conte
Quem da chara consorte o apartasse;
Despois, cobrindo a neve o verde monte,
Ao gasalhado o frio nos levasse,
Avivando o juizo ao doce estudo,
Mais certo manjar d’alma, emfim, que tudo.

Cantára-nos aquelle, que tão claro
O fez o fogo da árvore Phebêa,
A qual elle em estylo grande e raro
Louvando, o crystallino Sorga enfrêa;
Tangêra-nos na frauta Sanazaro,
Ora nos montes, ora por a arêa;
Passára celebrando o Tejo ufano
O brando e doce Lasso Castelhano.

E comnosco tambem se achára aquella,
Cuja lembrança, e cujo claro gesto
N’alma somente vejo, porque nella
Está em essencia puro e manifesto;
Por alta influição de minha estrella
Mitigando o rigor do peito honesto,
Entretecendo rosas nos cabellos,
De que tomasse a luz o sol em vellos;