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GLOSA DO SONETO 194.

Cá nesta Babylonia adonde mana
Hypocrisia, engano e falsidade;
Cá donde ousada toda carne humana
A todo arbitrio vive da vontade;
Cá donde enrouqueceo da Lusitana
Musa o furor heroico e suavidade;
Cá donde se produz por cega via
Materia a quanto mal o mundo cría;

Cá donde o puro Amor não tẽe valia,
Porque Baccho o tẽe hoje desterrado;
Cá donde a frecha d’ouro não feria,
Senão cabello preto e alfenado;
Cá donde a loura trança não se via,
Nem o rosto de sangue matizado;
Cá donde nada val a glória humana,
Que a mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá donde o mal se affina, o bem se dana,
Se algum a terra em si quer produzir;
Cá donde a falsa gente Mahometana
A glória toda funda em adquirir;
Cá donde multiplica a mão tyrana,
Professa em mais crescer, matar, mentir;
Cá donde o fazer bem he villania,
E póde mais que a honra a tyrannia;

Cá donde a errada e cega Monarchia
De fabulosas leis está vivendo,
E á fôrça d’hum amor engrandecia
O nefando Alcorão em qu’está crendo;