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ORIGEM DAS ESPÉCIES

Admitamos, enfim, que esta marcha se continua durante milhões de anos e se aplica durante cada um a milhões de indivíduos; poderemos nós admitir então que se possa ter formado assim um instrumento óptico vivo, tão superior a um aparelho de vidro como as obras do Criador são superiores às do homem?

MODOS DE TRANSIÇÕES

Se se chegasse a demonstrar que existe um órgão complexo que se não possa formar por uma série de numerosas modificações graduais e ligeiras, a minha teoria não poderia certamente defender-se. Mas não posso encontrar caso algum semelhante. Sem dúvida, existem muitos órgãos dos quais não conhecemos as transições sucessivas, sobretudo se examinarmos as espécies muito isoladas que, segundo a minha teoria, foram expostas a uma grande extinção. Ou então, ainda, se tomarmos um órgão comum a todos os membros de uma classe, porque, neste último caso, este órgão deve ter surgido numa época remota desde a qual os numerosos membros desta classe se desenvolveram; ora, para descobrir as primeiras transições que sofreu este órgão, ser-nos-ia preciso examinar as formas muito antigas já de há muito extintas.

Não devemos concluir a impossibilidade da produção de um órgão por uma série gradual de transições de uma natureza qualquer a não ser com extrema circunspecção. Poder-se-iam citar, nos animais inferiores, numerosos exemplos de um mesmo órgão exercendo ao mesmo tempo funções absolutamente distintas. Assim, na larva da libelinha e no caboz (Cobites) o canal digestivo respira, digere e excreta. A hidra pode ser voltada de dentro para fora, e então a sua superfície exterior digere e o estômago respira. Em casos semelhantes, a selecção natural poderia, se daí resultasse qualquer vantagem, especializar para uma única função todo ou parte de um órgão que até aí tivesse desempenhado duas funções, e modificar também considerável- mente a sua natureza por graus insensíveis. Conhecem-se muitas plantas que produzem regularmente, ao mesmo tempo, flores diferentemente constituídas; ora, se estas plantas não produzissem mais que flores de uma única forma, uma mudança considerável se efectuaria no carácter da espécie com uma grande rapidez comparativa. Contudo, é provável que as duas espécies de flores produzidas pela mesma planta sejam, no princípio, diferenciadas uma da outra por transições insensíveis que se podem ainda observar em alguns casos.