Página:Origem das espécies (Lello & Irmão).pdf/202

Wikisource, a biblioteca livre
176
ORIGEM DAS ESPÉCIES

o animal está muito irritado, assim como o observou Matteucci; manifesta-se mesmo tão pouco, que a custo se pode supor neste órgão as funções que acabamos de indicar. Demais, como demonstrou o Dr. R. Mac Donnell, a raia, além do órgão pré-citado, possui um outro junto da cabeça; não se sabe se este último órgão é eléctrico, mas parece ser absolutamente análogo à bateria eléctrica do torpedo. Admite-se geralmente que existe uma estreita analogia entre estes órgãos e o músculo ordinário, tanto na estrutura íntima e na distribuição dos nervos, como na acção que exercem sobre eles diversos reagentes. É preciso, sobretudo, observar que uma descarga eléctrica acompanha as contracções musculares, e, como afirma o Dr. Radcliffe, «no estado de repouso o aparelho eléctrico do torpedo parece ser a sede de uma descarga muito semelhante à que se efectua nos músculos e nos nervos no estado de inacção, e o choque produzido pela descarga súbita do aparelho do torpedo não seria de forma alguma uma força de natureza particular, mas simplesmente uma outra forma da descarga que acompanha a acção dos músculos e do nervo motor». Não podemos actualmente ir mais longe com a explicação; mas, como nada sabemos relativamente aos hábitos e conformação dos antepassados dos peixes eléctricos existentes, seria extremamente temerário afirmar a impossibilidade de estes órgãos poderem desenvolver-se gradualmente em virtude de transições vantajosas.

Uma dificuldade muito mais séria ainda parece embaraçar-nos quando se trata destes órgãos; encontram-se, com efeito, numa dúzia de espécies de peixes, dos quais alguns são muito alongados pelas suas afinidades.

Quando um mesmo órgão se encontra em muitos indivíduos da mesma classe, sobretudo nos indivíduos tendo hábitos de vida muito diferentes, podemos ordinàriamente atribuir este órgão a um antepassado comum que o transmitisse por hereditariedade aos descendentes; podemos, além disso, atribuir a sua falta, em alguns indivíduos da mesma classe, a uma desaparição provindo do não uso ou da acção da selecção natural. De tal maneira que, se os órgãos provinham por hereditariedade de algum remoto antepassado, poderíamos atender a que todos os peixes eléctricos seriam muito particularmente aliados uns aos outros; mas tal não é certamente o caso. Demais, a geologia não nos permite pensar que a maior parte dos peixes possuíam outrora órgãos eléctricos que os descendentes modificados hoje perderam. Todavia, se estudarmos este assunto de mais perto, compreendemos que os órgãos eléctricos ocupam diferentes partes do corpo de alguns peixes que os possuem; que a