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tumaram-se a venerar a memoria do tio, como a de um heroe e a de um martyr e a vêl-o aureolado de um verdadeiro prestigio lendario.

Para isto porém concorreu mais que outrem o hortelão.

O velho soldado era uma chronica viva das batalhas e façanhas d'aquelles tempos historicos e um panegyrista ardente do seu pobre official, cujo ultimo suspiro recolhêra.

As crianças sentiam-se instinctivamente attrahidas para a companhia do velho, em cujas narrações pintorescas e vivamente coloridas achavam um encanto irresistivel. Feria-lhes fundo a curiosidade a maneira por que elle fallava dos trabalhos da emigração, dos episodios do cerco do Porto, da fome, da peste e da guerra, triplice calamidade que conhecêra de perto, das batalhas em que havia entrado, da bravura do seu amo, e finalmente do Imperador, por quem o mutilado veterano professava um enthusiasmo quasi supersticioso, e a cujo vulto a sua narrativa imaginosa dava um aspecto epico e sobrenatural.

As crianças não se fartavam de interrogar aquella testemunha presencial de tantos feitos heroicos.

E assim eram neutralisadas as doutrinas dos pedagogos eruditos, encarregados da educação dos filhos de D. Luiz, e estes iam crescendo affeiçoados aos principios liberaes, que amavam de instincto, antes de os amarem de reflexão.

Mas dias de maior provação estavam reservados para esta familia.

A munificencia que o senhor da Casa Mourisca mantivera no voluntario desterro, a que se condemnou, obrigára-o a enormes e perigosos sacrificios.

D. Luiz nunca propriamente se occupára da gerencia dos seus bens. Fiel aos habitos aristocraticos dos seus maiores, deixára desde muito a procuradores todos os cuidados de administração, e de quando em quando recebia d'elles a noticia de que a sua casa se estava perdendo, sem que se lembrasse de perguntar a si proprio se não seria possivel oppôr um obstaculo áquella ruina.

O padre Januario, ou frei Januario dos Anjos, velho