Página:Os Fidalgos da Casa Mourisca (I e II).pdf/145

Wikisource, a biblioteca livre


Effectivamente appareceram dois rapazes, empunhando cada qual uma caneca a trasbordar de purissimo vinho verde, que os dois caçadores esvaziaram de um fôlego.

— Ah! — disse o doutor, no fim da libação — Não te arrenegues, Clemente, que não és mau rapaz a final. Estás muito soberbo com a tua regedoria, mas isso ha de passar-te. Ora agora fica sabendo que na quinta do Cruzeiro, desde tempos immemoriaes, encontra asylo quem ahi se acolher.

— Mas o senhor sabe que a lei pune a quem der escondrijo a um refractario. Parece-me que um doutor não póde deixar de saber estas coisas.

— A lei diz muita coisa, que todos nós sabemos; mas deixa lá a lei, que está quieta.

— Mas se o snr. administrador ordenar uma busca na casa...

— Que veja se se mette n'isso — acudiu o abbade, sorrindo ameaçadoramente.

— Tem direito para o fazer — questionou Clemente.

— Pois que se contente com o direito.

Clemente ia-se irritando.

— Mas é preciso pôr côbro a isto, meus senhores. Não se póde soffrer que em tempos de leis e de authoridades, haja uma casa onde nem lei, nem authoridade entram.

— Pois tenta, ó Clemente; quando te sentires de pachorra, manda-nos lá o exercito dos teus cabos e commanda o assalto. Ah! ah! ah! Havia de ter graça!

— Pelos modos por que vejo irem as coisas, não direi que se não chegue um dia a isso.

— Hei de gostar de vêr.

— Pois eu não. Os meus desejos eram que todos vivessem em paz e socego. E o que me custa é que partam os maus exemplos d'onde deviam vir os bons.

— Ora sabes que mais, Clemente? — ponderou o padre. — Dou-te de conselho que não puxes de mais pelo fiado. O mundo é assim em toda a parte, rapaz; e é preciso fazer a vista grossa para certas coisas. As leis são boas, mas não ha remedio senão soffrer de quando em