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ideias e de certas instituições, e a fazer a justiça devida a muitos preconceitos, que lhe haviam imposto como dogmas.

A um espirito d'estes, educado em observar e reflectir, não podiam passar por muito tempo desapercebidos os numerosos symptomas da decadencia que apresentava a Casa Mourisca. Assim, por vezes vinha-lhe ao espirito uma secreta apprehensão pelo seu precario futuro.

Mauricio, imaginação mais forte, natureza mais ardente, caracter mais frivolo e voluvel, vivia a sua vida de joven fidalgo de provincia; deixava-se ir na corrente dos seus amores faceis, dos seus prazeres e das suas dissipações, allucinado por os sonhos e chimeras de uma fertil fantasia, e não profundava os olhos até o seio obscuro das realidades. A sua leitura era exclusiva de romancistas e poetas. Imaginação nimiamente inquieta, razão por indolencia inactiva, não via, nem quereria vêr, o espectro, que ás vezes apparecia aos olhos do irmão.

Uma circumstancia havia, a que mais que a outras devia Jorge a apparição d'esse espectro, que, á semelhança da sombra do rei da Dinamarca, em Hamlet, ia exercendo uma funda influencia no animo do adolescente.

Esta circumstancia não era só para elle manifesta. Ao viajante, que já suppozemos parado a contemplar o vulto denegrido da Casa Mourisca, não passaria ella tambem desapercebida.

Na raiz da collina fronteira áquella, onde o solar dos fidalgos erguia as suas torres ameiadas, assentava o mais risonho e prospero casal dos arredores. Era uma completa casa rustica, conhecida por aquelles sitios pelo nome, que por excellencia se lhe dera, da Herdade.

O contraste entre a Herdade e o velho solar era perfeito.

Ella graciosa e alvejante, elle severo e sombrio; de um lado todos os signaes de actualidade, de vida, de trabalho, da industria que tudo aproveita, que não dorme, que não descança; a economia, a previdencia, o futuro: do outro, o passado, a tradição esteril, o silencio, a incuria, o desperdicio, a ruina: a cada pedra que o tempo derrubava do palacio, correspondia uma que se assen-