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vidos Correu-lhe no rosto uma pallidez mortal e a fronte principiou a cobrir-se-lhe de um suor, como de agonia.

A turbação que sentia, foi tão intensa, que teve de apoiar-se á parede para não cahir.

Eram os sons longinquos de um instrumento de musica, que partiam do logar para onde elle se dirigia. Vagos, confusos ainda, mas melodiosos como de harpa que, pendurada dos ramos dos carvalhos, vibra ao perpassar das brizas da tarde.

Na triste solidão d'aquella casa abandonada, á hora mysteriosa do escurecer do dia, aquelles sons resoando pelos longos corredores e pela vastidão das salas desertas, tinham de facto não sei quê de sobrenatural; dir-se-ia musica de fadas em um d'esses paços encantados, que ergue no meio das florestas a imaginação popular.

Mas não era sómente o inesperado e a estranheza do facto que feriam de espanto o senhor da Casa Mourisca. Aquelles sons exerciam sobre elle outra e superior influencia.

Conhecia-os; não eram vozes estranhas aos ouvidos do ancião ralado de saudades, e que se achava alli attrahido por ellas.

Conhecia-os; em outras épocas tinham já resoado entre aquellas tristes paredes e sob os altos tectos dos aposentos hoje deshabitados. N'esses tempos, havia alli dentro corações que pulsavam de sympathia ao escutal-os. Eram o signal de que o anjo da familia velava; de que a meiga criança, sobre cuja cabeça se condensavam todos os castos affectos d'aquella alma de homem, praticava com os anjos, seus irmãos, na mysteriosa linguagem da musica.

Aquelles sons... podia elle desconhecêl-os?... eram os da harpa de Beatriz.


Mas que mysterio revelavam elles agora? Que magia os faria renascer, quando, havia tanto, cahira gelada a mão que os desferia?

As sombras dos mortos teriam vindo povoar a casa abandonada pelos vivos? A alma querida de Beatriz viera