A poucos olhos os revelaria assim, como fazia aos de Bertha. Mas a quem conservava tão bem a memoria de Beatriz não era sacrilegio o devassal-os.
— Ai, Bertha, Bertha, para que me quiz mostrar Deus aquella alma na vida, se havia assim de roubar-m'a? — exclamava D. Luiz no decurso d'este melancolico exame.
— Para lhe dar um anjo que o veja do céo e vele pelo destino d'esta familia, que ella tanto estremecia na terra.
— O destino d'esta familia! — repetiu o fidalgo, assombrando-se-lhe o semblante. — Triste destino!
— Confio nas orações d'aquelle anjo.
— Quando uma familia cumpre no mundo uma dolorosa expiação, nem as orações dos anjos podem allivial-a d'ella. Deus afastou do mundo a innocente e fraca, para me deixar só a mim o pêso do meu infortunio e o das longas culpas dos nossos. Elle bem sabia que emquanto a tivesse ao meu lado para arrimo, nem sentiria o castigo. Aceito a sentença de Deus, procurarei cumpril-a com firmeza, e oxalá que meus filhos, recebendo o sinistro legado, não desfalleçam como covardes.
— Não pense n'essas coisas, meu padrinho. Tenho fé que ainda voltarão dias felizes para esta casa.
— Sim; quando a comprar em hasta publica qualquer proprietario endinheirado, que faça depois resoar por estas salas os sons dos bailes e dos festins. A casa verá então dias alegres, verá. E quem se lembrará dos velhos senhores d'ella, cujos descendentes talvez aceitem um logar de conviva á mesa do novo proprietario? Porque vamos para uma época de faceis condescendencias.
Bertha calou-se, baixando os olhos, porque pressentia perigos na direcção que levava a conversa.
D. Luiz tinha delicadeza para comprehender a discrição de Bertha, e mudando de tom, continuou:
— Mas perdoa-me, Bertha, estas ideias tristes da velhice não são para a tua idade. É uma crueldade da minha parte não guardar para mim estes pensamentos.
— Se eu podésse desvanecel-os!
O fidalgo limitou-se a fazer um gesto de negação.