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OS MAIAS
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Guimarães não descia. No segundo andar surgira uma luz viva, n’uma janella aberta. Ega recomeçou a passear lentamente pelo meio do largo. E agora, pouco a pouco, subia n’elle uma incredulidade contra esta catastrophe de dramalhão. Era acaso verosimil que tal se passasse, com um amigo seu, n’uma rua de Lisboa, n’uma casa alugada á mãi Cruges?... Não podia ser! Esses horrores só se produziam na confusão social, no tumulto da Meia-Idade! Mas n’uma sociedade burgueza, bem policiada, bem escripturada, garantida por tantas leis, documentada por tantos papeis, com tanto registro de baptismo, com tanta certidão de casamento, não podia ser! Não! Não estava no feitio da vida contemporanea que duas crianças separadas por uma loucura da mãi, depois de dormirem um instante no mesmo berço, cresçam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parabolas remotas dos seus destinos — para quê? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo ponto, n’um leito de concubinagem! Não era possivel. Taes coisas pertencem só aos livros, onde vêm, como invenções subtis da arte, para dar á alma humana um terror novo... Depois levantava os olhos para a janella alumiada — onde o snr. Guimarães decerto rebuscava os papeis na mala. Alli estava porém esse homem com a sua historia — em que não havia uma discordancia por onde ella pudesse ser abalada!... E pouco a pouco aquella luz viva, sahida do alto, parecia ao Ega penetrar n’essa intrincada