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OS MAIAS
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esperava diante do lume accêso, foram-o transportando n’um silencio só quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas, acudiam quando Carlos, na sua perturbação, ou o Ega fraquejavam sob o peso do grande corpo. A governante já estava no quarto d’Affonso com uma colcha de sêda para estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E alli o depuzeram emfim sobre as ramagens claras bordadas na sêda azul.

Ega accendera dois castiçaes de prata: a governante, de joelhos á beira do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco de cozinheiro na mão, ficára á porta, junto d’um cesto que trouxera, cheio de camelias e palmas de estufa. Carlos, no emtanto, movendo-se pelo quarto, com longos soluços que o sacudiam, voltava a cada instante, n’uma derradeira e absurda esperança, palpar as mãos ou o coração do velho. Com o jaquetão de velludilho, os seus grossos sapatos brancos, Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito estreito: entre o cabello de neve cortado á escovinha e a longa barba desleixada, a pelle ganhára um tom de marfim velho, onde as rugas tomavam a dureza d’entalhaduras a cinzel: as palpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam com a consolada serenidade de quem emfim descança; e ao deitarem-no uma das mãos ficára-lhe aberta e posta sobre o coração, na simples e natural attitude de quem tanto pelo coração vivêra!

Carlos perdia-se n’esta contemplação dolorosa.