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Fernão Mendez Pinto. 19

uão não conſentirão dizendo, q̃ não ouueſſe medo de couſa que viſſe, porque aquillo era gente que el Rey mandaua para fora a prender hum ladraõ, da qual repoſta confeſſo que não fiquey ſatisfeito, & começãdo eu ja neſte tempo a tartamelear, ſem poder quafi pronunciar palaura que ſe me entẽdeſfe, lhes pidi aſsi como pude, q̃ me deixaſſem tornar ao Iurupãgo em buſca de hũas chaues que me là ficaraõ por eſquecimẽto, & q̃ lhes daria por iſſo quarẽta cruzados logo em ouro, a q̃ elles todos ſete reſpõderaõ, nem q̃ nos dès quanto dinheyro ha em Malaca, porq̃ ſe tal fizermos, nos mandara el Rey cortar as cabeças. Neſte tempo me cercaraõ ja outros quinze ou vinte daquelles armados, & me tiueraõ todos fechado no meyo: até q̃ a menham começou a eſclarecer, que fizeraõ ſaber a el Rey q̃ eſtaua eu aly, oqual me mãdou logo entrar, & ſó Deos ſabe como o pobre de mim então hia, que era mais morto que viuo. E chegando ao outro terreyro de dentro, o achey encima de hũ Alifante, aeompanhado de mais de cem homẽs, a fora a gente da guarda, que era em muyto mor quãtidade, o qual quãdo me vio da maneyra que vinha, me diſſe por duas vezes, jangão tacor, não ajas medo, vem para cà, & ſaberàs o para que te mandey chamar, & acenando com a mão fez afaſtar dez ou doze daquelles que aly eſtauão, & a mym me acenou que olhaſſe para aly, eu então olhando para onde elle me acenaua, vy jazer de bruços no chão muytos corpos mortos, todos metidos num charco de ſangue, hum dos quais conheci que era o Mouro Coja Ale feitor do Capitão q̃ eu trouxera comigo, da qual viſta fiquey tão paſmado & confuſo, q̃ como homem deſatinado me arremeſſey aos pès do aliſante em q̃ el Rey eſtaua, & lhe diſſe chorando, peçote ſenhor q̃ antes me tomes por teu catiuo, que mandareſme matar como a eſſes que ahy jazem, porque te juro a ley de Chriſtão q̃ o não mereço, & lembrote que ſou ſobrinho do Capitão de Malaca, que te darà por mim quanto dinheyro quiſeres, & ahy tẽs o jurupango com muyta fazenda, quc tambẽ podes tomar ſe fores ſeruido; a q̃ elle reſpondeo, valhame Deos, como? taõ mao homẽ ſou eu q̃ iſſo faça? não ajas medo ele couſa nenhũa, aſſentate & deſcanſaràs, q̃ bẽ vejo q̃ eſtàs afrontado, & deſpois q̃ eſtiueres mais em ty te direy o porq̃ mãdey matar eſſe Mouro q̃ trouxeſte comtigo, porq̃ ſe fora Portuguez, ou Chriſtão, eu te juro em minha ley q̃ o não fizera, inda q̃ me matara hũ filho; então me mãdou trazer hũa panella com agoa, de que bebi hũa grande quantidade, & me mandou tambem auanar com hum auano, em que ſe gaſtou mais de hũa grande hora. E conhecendo elle então q̃ eſtaua eu ja fora do ſobreſalto, & que podia reſponder a propoſito, me diſſe, muyto bem ſey Portuguez q̃ ja te diriaõ como os dias paſfados matara eu meu pay, o qual fiz porq̃ ſabia que me queria elle matar a mim, por mexericos que homẽs

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