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Fernão Mendez Pinto. 28

aos treze dias da Lũa, ſe acabou tudo de conſumir, porque ſaindo el Rey fora da cidade por conſelho de hum ſeu caciz de q̃ muyto ſe fiaua, o qual por peita de hum bar douro, que valia quarenta mil cruzados, que os inimigos lhe deraõ, o moueo a iſſo, arremeteo aos inimigos, & trauou com elles hũa aſpera briga, na qual andãdo com milhoria muyto conhecida, o perro do caciz, que ficaua por Capitão na trauqueira, fingindo querello yr ajudar a continuar aquelle bõ principio, ſahio fora cõ obra de quinhentos homẽs que tinha comſigo, o que vendo hum Capitão dos inimigos Mouro Malauar, por nome Cutiale Marcaa, o qual tinha em ſua companhia ſeiſcentos Mouros Guzarates & Malauares, arremetendo às portas, que o caciz não quiz defender pela peita que tinha tomada, foy logo ſenhor da tranqueira ſem nenhũa reſiſtencia, & matou quantos doentes & feridos achou nella, que ſegundo ſe diſſe, paſſaraõ de miſ & quinhentos, ſem a nenhum dar a vida. O deſauenturado Rey, vendo a tranqueyra entrada, ſem até então ter nenhum ſentimento da traiçaõ do caciz, querendolhe ſocorrer, por ſer o mais importante, lhe foy forçado largar o campo, & vindoſe retirãdo para os vallos da caua que eſtauão mais perto, neſta volta que fez, quiz a fortuna que o mataſſe hum Turco de hũa arcabuzada que lhe deu pelos peitos, com cuja morte ſe acabou tudo de perder, pela grandiſſima deſordem & deſarranjo que ella cauſou em todos os ſeus. Os inimigos tomando o triſte Rey que jazia morto no campo, lhe tiraraõ as tripas, & ſalgado o meteraõ em hũa arca, & o leuaraõ ao Aachem, o qual o mandou publicamente, & cõ grandes cerimonias de juſtiça ſerrar em pedaços, & cozer nũa caldeyra de breu & azeite, com hum eſpantoſo pregaõ, que dizia aſsi. Eſta he a juſtiça que manda fazer Soltão Alaradim, Rey da terra dambos os mares, piuete das alampadas douro da capella do Profeta Nobi, que quer & lhe praz, que aſsi ſerrado & cozido em fogo padeça a alma deſte Mouro, por ſer tranſgreſſor da ley do Alcoraõ, & da perfeita crença dos Maſſoleymoẽs da caſa de Meca, que ſendo juſto por doutrina ſanta do liuro das flores, ſe fez nas obras intemente a Deos, com mandar continuamente auiſos dos ſegredos deſte reyno aos malditos caẽs do cabo do mundo, q̃ por tyrannia de offenſa graue, & por peccados de noſſo deſcuydo ſenhoreão Malaca, a que todo o pouo, com hum eſpantoſo tumulto de vozes reſpondia, pequeno caſtigo, para t,amanho crime. E deſta maneyra, que aſsi paſſou realmente na verdade, ſe perdeo eſte reyno de Aarù com morte deſte pobre Rey tanto noſſo amigo, ao qual me parece que puderamos valer com muyto pouco cuſto & cabedal que puſeramos de noſſa parte, ſe no principio deſta guerra, lhe acudiraõ co que elle pidio pelo ſeu Embaixador, mas de quẽ teue a culpa diſto (ſe ahy ouue algũa) não que-

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