pondeo
que no payol da proa os acharião,
& Antonio de Faria mandou
tres ſoldados que os foſſem logo buſcar,
os quais abrindo a eſcotilha para
os chamarem acima, os viraõ a todos
embaixo jazer degolados, de que ficaraõ
tão ſobreſaltados, que com hũa
tamanha grita que metia medo começaraõ
a dizer, Ieſu, Ieſu, Ieſu, venha
voſſa merce cá, & verà hũa couſa aſſaz
laſtimoſa, Antonio de Faria com
todos os mais que com elle eſtauão,
correo logo á proa com muyta preſſa,
& quando vio os moços jazer todos
mortos hũs ſobre os ourtos, ficou
tão corrado, que não podendo ter as
lagrimas, pondo os olhos no Ceo, &
com as maõs aleuantadas diſſe em
voz alta & magoada, ó bendito ſejais
meu Senhor Ieſu Chriſto por quão
piadoſo & miſericordioſo ſois em ſofrerdes
offenſa taõ graue como eſta,
& mandandoos tirar acima, não auia
homem que pudeſſe ter as lagrimas,
& que não fizeſſe outros mayores eſtremos,
vẽdo hũa molher com dous
mininosde ſeis até ſete annos, ambos
muyto fermoſos & innocentes
deſcabeçados ſem nenhũa piedade,
& os cinco moços que tinhaõ bradado
por nòs com as tripas fora dos corpos
& eſcalados pelas coſtas. Antonio
de Fatia tornandoſe a aſſentar
perguntou ao coſſayro, porque cauſa
fizera tamanha crueldade naquelles
innocentes que aly jazião? a que elle
reſpondeo, que por lhe ſerem tredros
em ſe moſtrarem a gente tanto ſua
inimiga como eraõ portugueſes, &
gritarem pelo ſeu Deos que lhes valeſſe,
& quanto aos dous mininos diſſe
que baſtaua ſerem filhos de Portugueſes,
a quem nunca tiuera boa
vontade, & com eſta meſma iſenção
reſpondeo a outras algũas preguntas
que lhe fizeraõ, & com tanta pertinacia
como ſe fora o proprio demonio
em carne. E perguntado ſe era
Chriſtão, diſſe que não, mas que ja o
fora no tempo que dom Paulo
Gama fora Capitão de Malaca, & dizendolhe
Antonio de Faria que pois
ja fora Chriſtão, que couſa o mouera
a deixar a ley de Chriſto, na qual tinha
certa ſua ſaluação, por ſeguir a
de Mafamede, na qual eſtaua clara a
perdição de ſua alma? reſpondeo, que
porque deſpois que fora Chriſtão,
fora ſempre muyto deſprezado dos
Portugueſes, porque onde antes, quãdo
era Gentio, lhe fallauão todos co
barrete na maõ, chamãdolhe Quiay
Necodà, que era nomealo ſenhor capitaõ,
deſpois que ſe fizera Chriſtaõ,
vieraõ a fazer pouca conta delle, & q̃
ſe fora fazer Mouro em Bintaõ, onde
deſpois de o ſer, el Rey do Iantana,
que ſe achara preſente, o tratara ſempre
com muyta honra, & os Mandarins
todos lhe chamauão irmaõ, pelo
que prometera, & aſsi o jurara no liuro
das flores, que em quanto viueſſe
ſeria inimiciſsimo da naçaõ Portu
gueſa, & de todo o mais genero de
homem que profeſſaſſe a ley Chriſtam,
o que el Rey & o caciz Moulana
lhe louuaraõ muyto, dizendo que
ſe tal fizeſſe lhe ſegurauão ſer ſua alma
bemauenturada. E perguntado
quanto tempo auia que ſe leuantara,