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dessas passagens feita, não em relação aos titulos, mas sim aos folios, corresponde exactamente aos logares em que essas passagens se acham no manuscripto do Archivo. Vê-se pois que este transumpto era anterior aos primeiros trabalhos historicos de Fernão de Pina nomeado em 1523, por morte de seu pae Rui de Pina, Guarda-mór da torre e Chronista-mór. Assim, o codice não podia ser mandado escrever por Damião de Goes, que substituiu Rui de Pina em 1548[1].

O manuscripto da Torre do Tombo dá testemunho de que no estado em que hoje possuimos o Livro das Linhagens, ou primitivo registo das familias nobres, e no estado, portanto, em que se achava nos fins do seculo XV ou nos primeiros annos do XVI, elle pertence a mui diversas epochas e a mui diversos auctores, lendo-se ahi passagens que evidentemente foram escriptas com um seculo d'intervallo. Falando, por exemplo, dos reis de França no titulo 6.º, leva a serie delles até Philippe o Ousado, que reinou de 1270 a 1285, e accrescenta que ora reina. A serie dos reis de Navarra não passa de Sancho o Forte fallecido em 1234, e a dos de Aragão termina em Pedro III, cujo reinado chega a 1285. Ao mesmo tempo que no titulo 7.º, em que escreve a successão dos reis portuguezes, pára em D. Afonso IV, tracta no titulo 21.º de D. Pedro I como já fallecido, dizendo chamaram-lhe justiçoso; porque no seu tempo etc. o que só poderia escrever-se no reinado de D. João I ou pelo menos no de D. Fernando. Será o Conde de Barcellos, falecido em 1354, auctor da genealogia dos reis de França escripta setenta ou oitenta annos antes? Seria um unico auctor que fecharia, não linhagens obscuras, mas successões reaes, não de paizes remotos, mas das diversas monarchias d'Hespanha, umas no principio do seculo XIII outras nos fins do XIV? Finalmente, poderia um filho de D. Dinís não só falar de D. Pedro I, mas até como de quem vivera em tempos passados?

Não é, porém, isto sómente. Para que não reste a menor sombra de duvida sobre a diversidade de epochas em que foram compostas differentes partes do Livro das Linhagens, e para ao mesmo tempo se conhecer que o Conde de Barcellos apenas seria um dos muitos, que, tomando por fundamento o registo da nobreza, lhe accrescentaram ou mudaram as cousas em que o creram defectivo, citaremos um logar que põe a evidente luz o nosso pensamento. É o titulo 35.º que nos subministra essa passagem decisiva. Eis como elle começa: «Do bom D. Vasco Pimentel. Diz o conde D. Pedro em seu livro que esto D. Vasco foi filho de D. Sancha Martins etc.» Semelhantes palavras mostram que pessoa bem differente do Conde de Barcellos escreveu o titulo 35.º Depois de repetir em substancia uma historia escandalosa que elle narrava, accrescenta: «E nós fizemos muito em nosso tempo por saber a verdade deste feito; se passara assim como aqui é escripto; e achamos por fidalgos, assim como D. Pedro Fernandes de Castro, e por Lopo Fernandes Pacheco, e por D. Pay de Meira, e por D. Pay Correa, abbade de Pombeiro, e por D. Egas Lourenço Chantre de Braga, que foi mui bem com elrei D. Diniz, que esto fora apostilla de maldizer etc.» Esta passagem, que evidentemente se não póde attribuir ao Conde, tambem se não póde suppor do mesmo que escrevia no tempo de D. Fernando ou D. João I; porque das personagens que cita a maior parte falleceram pelo meiado do seculo XIV[2]. Assim vemos que pouco depois de D. Pedro compilar o seu livro, e talvez sendo ainda vivo, era já refutado por quem se cria melhor informado do que elle.

Tal é o estado desse famoso nobiliario, que se attribue exclusivamente a um homem. É das entranhas do livro, que, por assim dizer, se vão arrancar os testemunhos do infundado de tal opinião. Um leve exame bastava para isso, e todavia, apesar de que muitos notaram as difficuldades chronologicas que occorriam sobre a epocha da composição da obra, o nome do Conde prevaleceu, porque é o unico que ahi se menciona, e sobre todos os outros sujeitos que nelle trabalharam só ha tradições vagas ou completa ignorancia.

Nós cremos, porém, que o livro de D. Pedro de Barcellos, sem que deixasse de ter por fundamento o registo da nobreza, foi até certo ponto uma obra á parte. Parece provavel que os que foram successivamente alterando o registo antigo se contentavam de accrescentar as linhagens


  1. Memor. do R. Arch., p. 62 e 67.
  2. D. Pedro Fernandes de Castro em 1343, e Lopo Fernandes Pacheco em 1349.