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CAVALLERIA RUSTICANA

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agua, e dá temporal, e a canôa vira; qu'é de Fulano? tá, tá, tá, fol o anequim! Toda a gente, péga feito mulher velha: foi o anequim do pharol! Ora ahi está como são as coisas. Elle ha muito anequim e tintureiras por aqui. Onde é mar sem cação? Mas dizer que um tal móra ali, é embroma.

E na sua pinturesca linguagem de maritimo, que ás vezes se tornava prodigiosamente technica, narrou-me toda a vida daquellas paragens e da torre. Falou de como, segundo a tradição, se foram baptisando os recifes, os crimes de cada un, as hecatombes periodicas de aves nocturnas que, cegas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, juncando o chão de corpinhos latejantes, as medonhas tormentas nas quaes o pharol estremece como a tiritar de pavor. Do que não falou Gerebita, naquelle inesquecivel dia?

— E o ajudante? Tem-n'o cá?

O rosto do meu pharoleiro mudou de expressão. Vi de relance que eram inimigos.

— "E' aquelle estupor que la pesca, disce-me achegando-se á janella e apontando um vulto immovel, acocorado n'um penedo.

— "Está a apanhar garoupinhas. E' o Cabrea. Máu companheiro, máu homem...

Entreparou. Percebi que mascava uma confidencia difficil. Mas a confidencia denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça e murmurou como de si para si:

— "Está cá de pouco, e é unico homem no mundo que não podia estar cá!... Já reclamei, já mostrei o perigo ao capitão do porto, mas qual!

Estranha creatura o homem! Insulados do mundo n'aquella fragua, ambos naufragos da vida, o odio os separava... Não faltavam, entretanto, accommodações no pharol para as familias dos seus guardiães. Porque não as tinham all? Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpellei-o, mas Gerchita me retrucon de modo lnviezado.

— "Familla não tenho, isto é, tenho e não tenho. Tenho porque sou casado e não tenho porque... Historias! Estas cousas de familia é bom que fiquem cá com a gente.

Notel de novo que a pique d'uma revelação engulia-a a tempo, por desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram, sombras más annuvearam-lhe a physionomia. E mais torvo ainda me pareceu quando se abriu a porta e Cabrea entrou, sobraçando uma cesta de pescado. Typo de má cara, passou, sem nos volver um olhar, em direitura á cosinha. Mal se sumilu o bruto, Gerebita exclamou "Raio do diabo!" pespegando n'un caixote expiatorio um murro de fender pinho. Depois: