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REVISTA DO BRASIL

— "O mundo é tão grande, ha tanta gente no mundo, e me cae aqui o unico companheiro que eu não podia ter!...

— "Porque?

— "Porque?... Porque... é um louco.

Entre o primeiro e o segundo "porque" notei transição radical. Dubio o primeiro, o segundo affigurou-se-me resoluto, como illuminado pelo clarão de uma ideia brotada no momento.

Desde esse dia nunca mais Gerebita abandonou o thema da loucura do outro. Demonstrava-m'a de mil maneiras.

— "E aqui, onde os sãos perdem a tramontana, argumentava, um já assim rachado de telha aos tres por dois rebenta como bomba em fogueira. Eu jogo como não vara o mez. Não vê que modos?

Metade por suggestão, metade por observação leviana, razoavel me pareceu a phophecla, e como Gerebita sem cessar malhava na mesma tecla acabei por convencer-me que o casmurro era um fadado ao hospicio com pouco tempo de equillbrio nos miolos.

Um dia Gercbita abordou a questão nestes termos:

— "Quero que o senhor me resolva este caso: estão dois homeus sós n'uma casa; de repente um enlouquece e se atira como um cação sobre o outro. O outro deve deixar-se matar como um parco ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?

Era por demais clara a consulta; respondi como um rabula positivo:

— "Se Cabrea enlouquecesse e te agredisse, não havendo socorro á mão, matal-o seria um direito natural de defesa. Matar para não morrer não é crime, mas isto só em ultimo caso, você comprehende.

— "Comprehendo, respondeu-me distrahidamente, como quem lá segue os voiteios duma ideia secreta, e, depois de longa pausa:

— "Seja o que Deus quizer, murmurou de si para comsigo Deixei-me ficar á janelia a ver cahir a tarde. Nada mais triste do que umas ave-marias no ermo. A treva espessára as aguas e absorvia no céo os derradeiros pallores da luz. No poente um leque aluarado, vermelhaço nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barral-o de listrões horizontaes. Triste... A ardosia do mar, as primeiras estreiiinhas entreluzindo estrouvinhadas, o manulho na pedra, tchá, tchá, compassado, eterno... A alma confrangiu-se-me de angustia. Vi-me naufrago, retido para sempre n'um navio de pedra, grudado como craca desconforme na pedranceira da ilhota. E pela primeira vez na vida senti profundas saudades desea coisa sordida, a mais reles de quantas inventou a civilisação, o "café", com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a tahaco e a sua freguezia habitual de vagabundissimos "agentes de negocios"...