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XXIV

Abril 1872.

E no dia seguinte, ao teu almoço, recebes um papel dobrado, onde está escrito:

«Deve o senhor fulano à patrulha nº tantos por socorros prestados na estrada de tal — 27$000 réis!»

Que dirias tu, concidadão amado?

Tal foi um caso recente. Uma pequena embarcação acha-se em perigo à barra. Era de noite, escuro mar e escuro céu. A torre de S. Julião dá tiros de «alarme», a pedir socorro. Mas a embarcação escapa-se à vaga e entra o rio, salva. Era uma bateira. No outro dia recebeu esta conta:

«Deve o barco tal, à torre de S. Julião, pelos tiros de ontem — 2$400 réis.»

Ora a Torre de S. Julião, avisando o porto, por meio de tiros, da iminência de um perigo, cumpre um dever estrito de polícia: e portanto apresentando ao barco protegido a conta somada dos seus serviços — cai na inexplicável singularidade daquela patrulha que te salva, concidadão. Esta patrulha argumenta assim: o senhor podia ser roubado e não foi, estava eu aqui, de capote de oleado, a rondar: o Estado paga-me por isso 360 réis diários: deve mais o senhor 4$800 réis!

Esta nova interpretação do preço da segurança vai transformar radicalmente os costumes: o bombeiro reclamará do incendiado a despesa de esforços e de trabalhos que adiantou: o salva-vidas apresenta, sorrindo, ao náufrago, uma conta em que somando as ondas e as forças de remo — exige 7$200 réis por afogado. O farol faz suspender a marcha dos navios e destaca o escaler com a conta: tanto de gás e tanto de boa vontade.

Animadas salutarmente por estes exemplos, a caridade e a filantropia abandonam o idealismo estéril do seu desinteresse — e reclamam salário. Um cidadão escorrega, outro ajuda-o a levantar, e atira-se logo para uma loja de papel a redigir a conta da sua acção piedosa. Um homem cai ao mar e o barqueiro decidido que o salva, apresenta-lhe, com grandes felicitações, este papel:

Por me ter molhado, 1 $000 réis.

Por ter nadado, 15200 réis.

Por ter de mudar de fato, 800 réis.

Por secar este, 350 réis.

Deve o senhor ex-afogado — 3$350 réis.

Uma coisa porém nos perturba, neste sistema judaico da torre de S. Julião. E é que sendo ela tão escrupulosa que não adianta, por caridade, de graça, um tiro de pólvora — é evidente que há-de por todos os modos pretender evitar que a sua despesa não seja

Supõe, querido concidadão, que no escuro isolamento de uma estrada, eras uma noite atacado por dois ladrões. Preparas-te para lhes deixar nas mãos, amigavelmente, o teu relógio e a tua bolsa de trama de prata. Mas os senhores ladrões pretendiam a mais um pequenino divertimento — que era crivar-te de facadas. Estás num momento deplorável... Sente-se de repente o trote de cavalos. E uma patrulha, uma ronda de segurança! Chega, dispersa à pranchada os senhores assassinos, e restitui-te à vida, aos teus negócios, aos beijos dos teus pequerruchos, ao Grémio e aos teus vícios.

Certamente entras em casa trasbordando em gratidão sentida. Que excelente patrulha!

Que bravura, que prontidão, que decisão! Que gente! integralmente paga. A ilustre torre não pode querer decerto que a caloteiem! E decerto só adia

no match

ntará os seus tiros com segurança de exacto pagamento! Mas como faz a ilustre torre para conhecer da honradez dos seus navios? E de noite com um céu negro, um mar bravio, um vento ululante, o barco é apenas uma forma indistinta na água inclemente. A ilustre torre não pode saber se ele é uma rica galera inglesa de largo crédito — se uma pobre muleta de pescadores, proletária das águas.

Como distingue a preclara torre? Ela não pode fiar os seus tiros, ao acaso.

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Imagine-se que salvava apenas alguns miseráveis varinos de gabão esfarrapado! — Sua senhoria perdia a sua pólvora! Também perante um navio em perigo, ela não pode dizer ao vento que se retraia, à vaga que detenha o seu salto, à rocha que se afaste — para ter tempo de perguntar ao capitão: «quem dá vossemecê por fiador?»

Lúgubre embaraço!

Por outro lado é bem possível que nem todos os preços convenham ao navio. Um náufrago tem direito a ser salvo, por preços cómodos. Pode querer regatear. E a torre anda imprudentemente adiantando trabalho, morrão e pólvora por uma embarcação aferrada aos cobres, que depois se recusará e dirá: «Não, eu não pedi para ser salva por esse preço; tenho mulher e filhos, não o vou roubar à estrada; a senhora torre, se atirou, foi porque quis; quem lhe encomendou o tiro?»

E a venerável torre seria caurinada.

Parece-nos isto, pois, um negócio em que a torre pode perder muito. E com ela o

Estado! Porque evidentemente o Estado recebe avidamente o preço da pólvora gasta.

Nem podia deixar de ser. Não estamos numa situação de tal prosperidade que possamos, com a imprevidência de trovadores — gastar 2$400 réis para salvar vinte vidas. Nós damos frequentemente, nos castelos, nas torres do mar, nos navios, salvas de 21 tiros; mas para celebrar os dias de gala e honrar as esquadras ricas que nos visitam. Gastamos com esse luxo contos de réis de pólvora — mas para sermos uma nação janota. Para salvar uma tripulação não podemos gastar a mais 2$400 réis. Meia moeda por doze vidas! Dois tostões por vida, é muito.

Não podemos ter a caridade gratuita. E necessário que o náufrago largue a espórtula. «Tu, pobre barco, estás aí nessa demência da água impiedosa, torce-te o vento, ladra-te a onda, esperam-te os rochedos; vens cheio de água, é de noite, e estamos nós sós, tu, barco perdido, eu, torre salvadora; vais-te despedaçar, vais morrer.

Ora muito bem... Quereis viver, vós tripulantes, ir para vossas casas tranquilos, para os contentamentos da vida, para o bom sol do dia, tu que és novo, para a tua noiva, tu que

és velho, para a tua filha? Dai para cá três moedas. Se sois miseráveis, vendei a rede, o barco, as amarras, mas passai para cá a quantia!

Com tais falas, tão lógicas, é impossível que o barco — não largue os cobres. E o

Estado não perderá o seu tempo e a sua pólvora.

Tudo para maior grandeza deste País, onde as vinhas florescem, e Osório medita.