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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE III


O segundo dos tres espiritos


(Continuado do n.º 10)


No horisonte, para o lado d'oeste, o sol caminhando para o occaso deixára uma lingua de fogo d'um vermelho ardente, que por um momento illuminou esta scena de desolação, como se fôra a vista scintilante d'um olho sombrio, cujas palpebras se vão abaixando pouco e pouco até se fecharem de todo, terminando por se perder na obscuridade da noite.

— Em que logar estamos? perguntou Scrooge.

— Onde vivem os mineiros que trabalham nas entranhas da terra, replicou o Espirito. Conhecem-me bem. Vede.

Uma luz brilhou na janella d'uma cabana, e para alli se encaminharam elles devagarinho.

Passando atravez do muro de pedra e lama, encontraram uns poucos de companheiros muito alegres, reunidos em redor d'um magnifico fogo.

Um pobre velho e sua mulher com seus filhos e os filhos destes, e mais uma outra geração além, estavam alli reunidos com o seu vestuario domingueiro.

O bom do velho, com uma voz que raras vezes excedia o arruido e romorejar do vento sobre aquelles desertos terrenos, cantava-lhe uma lôa de Natal, — já fóra de moda na sua meninice — e de quando em quando todos respondiam em côro.

Sempre que elles cantavam sentia o velho redobrar o seu vigor e augmentaram-se-lhe as forças, mas quando se calavam sentia-se de novo voltar ao seu antigo estado.

O Espirito não parou neste logar, mas pediu a Scrooge que se lhe agarrasse com força á tunica, e passando por cima do pantano dirigiu-se… onde lhes parece? Ao mar não, com certeza. Ao mar, sim senhores!

Scrooge olhando á rectaguarda viu com grande horror, a ultima ponta da terra e uma medonha fileira de rochedos; e os seus ouvidos ensurdeceram com o sussurro das ondas, que elevando-se e abaixando-se alternadamente, vinham despedaçar-se contra as medonhas cavernas que tinham cavado, como se n'um accesso de raiva tivessem pretendido minar a terra.

Edificado sobre um rochedo, que fazia parte d'um triste recife, ao lume d'agua, a algumas leguas da praia, e batido durante todo o anno pelas vagas embravecidas, erguia-se um solitario pharol.

Na sua base viam-se montões de plantas maritimas e sobre estas muitos passaros d'arribação — nascidos do vento, poderia alguem julgar, da mesma forma que as algas nascem do mar — elevarem-se ás nuvens, e descerem repentinamente, similhantes ás vagas que elles tocavam com as azas.

Mas mesmo aqui os dois guardas do pharol tinham feito uma fogueira, que atravez do postigo, na espessa pedra, lançava um raio de luz sobre o medonho oceano.

Apertando as mãos callossas por cima da tosca mesa a que estavam assentados, desejaram um ao outro Boas Festas, bebendo o seu grog, e um delles, o mais velho, com o rosto encoscorado e bronzeado pela intemperie da atmosphera, exactamente como estaria a figura da proa d'uma fragata com longos annos de serviço, principiou com voz de trovão um cantico, que se poderia tomar como o ruido da tempestade.

De novo se poz em marcha o Espirito, caminhando por cima do sombrio e agitado mar — e foi andando, andando — até que estando mui distante da terra, conforme elle disse a Scrooge, abordaram a um navio.

Collocaram-se ao lado do marinheiro do leme, do vigia da prôa e dos officiaes de quarto, sombrias e exquisitas figuras nas suas occupações; mas cada um delles assobiava uma cantiga do Natal, ou pensava no Natal, ou recordava em voz baixa ao seu companheiro algum dia de Natal passado, com as esperanças que se ligam a um feliz regresso ao seio da familia.

Todos a bordo, acordados ou adormecidos, bons ou preversos, tinham trocado com seus companheiros palavras mais amigaveis do que em qualquer outro dia do anno; todos tinham partilhado mais ou menos os prazeres daquelle dia; todos se tinham recordad dos parentes ou amigos ausentes, acreditando que estes lhe retribuiam ao longe o mesmo pensamento.

Foi uma grande surpresa para Scrooge, em quanto prestava ouvido attento ao rumor do vento, e pensava quão solemne coisa era o ir caminhando no meio das trevas sobre um abysmo desconhecido, cuja profundidade era um segredo tão impenetravel como a morte, foi uma grande surpresa para Scrooge, como diziamos, em quanto estava mergulhado nestes pensamentos, ouvir uma gargalhada expansiva.

Mas muito maior foi a sua surpresa quando reconheceu que essa gargalhada fôra dada por seu sobrinho, e se encontrou n'um quarto allumiado, quente e aceiado, com o Espirito permanecendo a seu lado sorrindo-se, e deitando a seu sobrinho olhares d'affabilidade.

— Ah! ah! ah!, dizia rindo-se o sobrinho de Scrooge.

Se por qualquer acaso, pouco provavel, tiverem encontrado alguem capaz de se rir com melhor vontade do que o sobrinho de Scrooge, digo-lhes então que muito desejaria conhecer essa pessoa. Apresentem-me esse phenomeno, que desejarei cultivar a sua amisade.

Por uma boa, justa e nobre compensação nas coisas deste mundo se as molestias e os pesares são contagiosos, não ha nada tambem que o seja tanto como o riso e o bom humor.

Em quanto o sobrinho de Scrooge ria deste modo, amarrando as mãos nas ilhargas, e fazendo as mais extravagantes contorsões com o rosto, a sobrinha de Scrooge, sobrinha pelo casamento, ria com tanto gosto como o marido. E os amigos reunidos em sua casa não querendo ficar atraz, riam tambem a bandeiras despregadas.

— Ah! ah! ah!

— Palavra de honra! elle disse-me que o Natal era uma asneira! exclamou o sobrinho de Scrooge. E acreditava-o!

— Mais vergonha para elle, Fred! disse a esposa com indignação.

É um gosto vêr as mulheres; nada fazem por metade, tomam tudo a serio.

A sobrinha de Scrooge era muito linda; excessivamente linda. Tinha uma physionomia tão insinuante, e um ar tão ingenuo que a todos encantava; uma boquinha que parece fôra feita para nella se darem beijos — e sem duvida o preceito era cumprido; — na barba tinha uma quantidade de pequenas rugas que lhe davam uma graça perfeita quando se sorria — e então os olhos? eram os mais vivos e mais seductores que jámais se viram em creatura alguma. No todo era o que se pode chamar uma belleza provocante, mas prompta a dar uma satisfação por tal motivo — e satisfação convincente.

— A verdade é ser elle um apoquentador de marca, que podia ser mais agradavel, disse o sobrinho de Scrooge. Todavia os seus defeitos trazem com elles o seu proprio castigo, e eu nada tenho a dizer contra elle.

— Parece-me que elle é muito rico, Fred, insinuou a sobrinha de Scrooge. Pelo menos tu assim m'o tens dito.

— E que tem isso, minha amiga! disse o sobrinho de Scrooge. A sua riqueza de nada lhe serve; nenhum bem faz com ella; nem elle mesmo se quer a utilisa. Não tem a satisfação de pensar... ah! ah! ah!... que somo nós a quem aproveitará essa riqueza.

— Não posso soffrer o tal avarento! observou a esposa.

As irmãs da dona da casa e toda as outras senhoras expressavam a mesma opinião.

— Eu posso! disse o sobrinho de Scrooge. Tenho compaixão d'elle; não podia zangar-me com elle, quando mesmo quizesse. Quem soffre por cauza das suas loucas phantasias? Elle mesmo.

Não digo isto por se lhe ter mettido em cabeça aborrecer-nos e não ter querido vir jantar comnosco, porque por essa razão apenas perdeu um fraco jantar…

— Sim?… pois a mim parece-me que o senhor nosso tio perdeu um magnifico jantar, interrompeu a sobrinha de Scrooge.

Todos os convidados disseram o mesmo, e deve-se confessar que eram os mais competentes juizes pela simples razão de que o tinham acabado de comer; e com a sobremeza, estavam chasqueando, e aquecendo-se ao mesmo tempo a um excellente fogo.

— Fallam verdade? Estimo muito saber isso, disse o sobrinho de Scrooge, por que não tenho grande fé nas donas de casa, verdes em annos. Que dizes a esse respeito Topper?

Era claro que Topper tinha lançado as suas vistas sobre uma das irmãs da sobrinha de Scrooge, porque respondeu, que um solteiro era um paria na sociedade, não tendo direito a exprimir a sua opinião sobre tal assumpto: e por esta resposta corou a irmã da sobrinha de Scrooge — aquella que tem ao pescoço um enfeite de rendas — e não a que está com um ramalhete de rosas na mão.

— Continúa, Fred; vamos, disse a sobrinha de Scrooge batendo as mãos. Nunca acaba o que principia a dizer. É bem ridiculo…

O sobrinho de Scrooge novamente se entregou a um accesso de hilaridade, e como fosse impossivel fugir ao contagio, — apesar de que a rechouchuda irmãsinha tentou obstar-lhe, respirando vinagre aromatico em quantidade — o seu exemplo foi seguido unanimemente.

— Direi unicamente, continuou o sobrinho de Scrooge, que meu tio, tendo-nos pouca affeição, e não querendo vir ver-nos, perde o ensejo de gosar alguns momentos de prazer que não lhe teriam feito mal. Estou certo que se priva de companheiros mais alegres do que os seus proprios pensamentos, e de passar horas de maior satisfação do que as passadas no seu velho e humido escriptorio, e no seu empoeirado quarto. Estou na firme tenção de todos os annos lhe fazer os mesmos offerecimentos quer elle acceite quer não, porque tenho pena d'elle. Pode elle até á morte chasquear á sua vontade do Natal, mas não poderá deixar de formar uma melhor opinião — aposto quanto quizerem — quando me vir ir a sua casa, um anno apoz outro, dizer-lhe com bom humor: «Tio Scrooge como passa»!

«Tio Scrooge como passa?

Se isto sómente o podesse levar a deixar ao seu pobre caixeiro umas cincoenta libras, já era alguma coisa. Não tenho a certeza, mas está-me a parecer que lhe fiz alguma impressão hontem.

Chegára agora a vez aos circumstantes de rirem da presumpçosa ideia d'elle ter conseguido impressionar Scrooge. Mas como elle era dotado d'um excellente caracter, pouco se lhe dava do que se riam os seus convidados, com tanto que rissem a fartar, e por isso tratou de avivar a hilarida de fazendo passar a garrafa de mão em mão.

Depois do chá, tratou-se de muzica. Era uma familia de muzicos, sabendo todos menos mal do seu officio, quando se tratava de cançonetas e arias buffas; especialmente Topper que atroava a salla com a sua voz de baixo, como o melhor artista, sem necessitar de entumecer as veias da fronte, ou tornar-se rubro como o pimentão.

A sobrinha de Scrooge tocava harpa muito bem; e entre outras peças de muzica tocava uma cançãosinha muito simples (uma bagatella que se poderia aprender a assobiar em dois minutos) justamente a canção favorita daquella menina que fôra buscar Scrooge á eschola, conforme recordára o Espectro do natal passado.

Quando Scrooge ouviu aquelle muzica tão sua conhecida recordou-se então de tudo o que lhe mostrára o Espirito: enterneceu-se cada vez mais, e pensou que se tivera ouvido mais vozes daquella canção, ha annos atraz, talvez tivesse cultivado as affeições da vida, com as proprias mãos, em logar de ter aguçado a impaciente picareta do coveiro que enterrou Jacob Marley.

Não gastaram toda a noite com a muzica.

Passado pouco tempo principiaram os joguinhos de prendas; porque é bom que nos tornemos algumas vezes creanças, e nunca em melhor occasião do que no Natal, festa fundada por um Deus-menino.

Meus amigos, attenção! Ahi vai começar a cabra-cega; se havia de faltar este classico joguinho! Olhem que grande patife aquelle Topper! Com os olhos vendados, mas vê mais do que qualquer de nós á hora do pino do sol! Eu estou convencidissimo de que o maroto hia de combinação com o sobrinho de Scrooge, e que o Espirito do Natal presente não era estranho a tal combinação. A maneira porque o fingido cego perseguia a rochenchuda menina do enfeite de renda, era um verdadeiro ultrage á incredulidade da natureza humana. Quer ella deite ao chão os ferros do fogão, ou as cadeiras, ou vá d'encontro ao pianno, para qualquer parte que se dirigia o patife segue-a immediatamente. Sabe sempre onde está a menina do enfeite. Não quer agarrar mais ninguem. Se o tivesseis empurrado como fizeram alguns d'elles de propozito, fingiria que vos procurava agarrar, mas d'um modo que seria uma injuria para a vossa inteligencia; e no mesmo instante ter-se-hia desviado em direcção á menina do enfeite. Esta gritava algumas vezes que não era jogo franco, e realmente não era.

Quando Topper por fim chegou a agarral-a, quando, a despeito da seda do vestido que escorregava, e dos rapidos movimentos da menina para lhe fugir, conseguiu leval-a para um canto d'onde se não podia mexer, então a sua coducta tornou-se abominavel. Porque pretendendo não a reconhecer apalpou-lhe o enfeite da cabeça, e para mais se certificar da identidade da pessoa apertou-lhe um anelzinho, que ella trazia no dedo, assim como lhe segurou uma cadeia que trazia ao pescoço! Vil patife!... tambem não ha a menor duvida em como a menina lhe fez vêr a inconveniencia de sua coducta, porque em quanto outro se occupava a fazer de cabra cega, foram elles para o vão d'uma janela atraz dos cortinados fallar confidencialmente.

(Continua)