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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE III


O segundo dos tres espiritos


(Continuado do n.º 12)


A sobrinha de Scrooge não tomou parte n'aquelle jogo da cabra-cega, mas foi sentar-se commodamente a um cantinho da sala n'uma magnifica cadeira de braços, com os pés pouzados sobre um escabello, tendo atraz de si o Espirito e Scrooge. Nos jogos de prendas entrou ella, e em alguns tornou-se admiravel principalmente no Onde, Quando e Como? e com alegria tacita de seu esposo, derrotou completamente suas irmãs, apezar d'estas serem raparigas espertas — senão que o diga Topper. Ao todo deviam alli estar umas vinte pessoas, velhos e novos, mas todos tomavam parte nos jogos; e até Scrooge esquecendo completamente, — tanto era o prazer que sentia pela scena que passara, — que não podia ser ouvido, respondia em altos gritos ás palavras que davam a adivinhar, e muitas vezes encontrava a chave do jogo; porque diga-se a verdade nenhuma agulha das mais finas, das melhores White-Chapels, garantida para não cortar o fio, era mais penetrante de que o espirito de Scrooge, apezar do seu ar apatetado.

O Espectro sentia grande prazer ao vel-o com taes disposições, e contemplava-o com ar tão benevolo, que Scrooge, como uma creança, pediu para ficar até á sahida de todos os convidados.

O Espectro respondeu-lhe, que lhe era impossivel comprazer com a sua vontade.

— Vai começar um novo jogo, disse Scrooge. Só meia hora Espirito, só meia hora!

Era o jogo chamado Sim e Não. O sobrinho de Scrooge devia pensar em alguma coisa, e os outros procurar adivinhar no que elle pensava; e não devia responder ás perguntas dos circumstantes, senão por sim ou não conforme pedisse o caso. O fogo vivo e animado de perguntas a que estava exposto obrigou-o a confessar que pensava n'um animal, um animal vivo, um animal algum tanto desagravel, animal selvagem, animal que grunhia e roncava algumas vezes, e outras vezes fallava, e vivia em Londres, e passeiava nas ruas, e não se mostrava ao publico por paga, não vivia em jaula, não era morto no matadouro, e não era nem cavallo, nem burro, nem vacca, nem toiro, nem tigre, nem cão, nem porco, nem gato, nem urso. A cada nova pergunta que lhe faziam o bom do sobrinho soltava uma nova gargalhada com tal prazer, que se via obrigado a levantar-se da cadeira e a bater com os pés no chão. Finalmente, a irmãsinha do enfeite de renda, acommettida tambem d'um riso louco, exclamou:

— Adivinhei! Já sei quem é, Fred! Já sei quem é!

— E quem é?

— É o teu tio Scro-o-o-o-oge!

E tinha adivinhado a menina. A admiração foi geral, apezar de que algumas pessoas notaram que á pergunta «É um urso?» a resposta deveria ter sido «Sim» — pelo motivo de que uma resposta negativa era o sufficiente para desviar todos os pensamentos de Scrooge, suppondo que alguem d'elle se tivesse lembrado.

— Meu tio Scrooge foi causa da nossa alegria, disse Fred, e mostrar-nos-hiamos ingratos deixando de lhe fazer uma saude. Justamente cada um de nós temos na mão um copo de vinho quente, bebamos pois á saude do tio Scrooge.

— Muito bem! Á saude do tio Scrooge! exclamaram todos.

— Desejemos boas festas e um feliz anno novo ao pobre velho, muito embora seja elle o que fôr.

Não aceitaria de mim este cumprimento, mas no entanto ha de tel-o, accrescentou o sobrinho de Scrooge. Á saude do tio Scrooge.

O tio Scrooge impeceptivelmente alegrara-se tanto, e sentiu-se tão aliviado do coração, que teria correspondido ao brinde, apezar dos circumstantes não darem pela sua presença, e ter-lhes-hia agradecido em termos que ninguem ouviria, se o Espirito lhe concedesse o tempo sufficiente. Mas a scena toda desappareceu quando o sobrinho pronunciava a ultima palavra, e tanto Scrooge como o Espirito se pozeram de novo a caminho.

Viram muitas e longiquas terras, e vizitaram algumas habitações, com resultado feliz. O Espirito conservava-se junto do leito dos enfermos e estes alegravam-se; os expatriados julgavam-se no paiz natalicio; os infelizes luctanto com a sorte adversa, tornavam-se pacientes com a esperança do porvir, e os indigentes accreditavam nas suas riquezas.

Nas casas de beneficencia, nos hospitaes, nas prisões, em todos os refugios da mizeria, onde o homem vaidoso e cheio d'orgulho não tinha podido abusar da sua mesquinha authoridade tão ephemera, para fechar a porta e impedir a entrada do Espirito, este deixava a sua benção e ensinava a Scrooge os seus preceitor de caridade.

Foi aquelle uma comprida noite, se foi tão sómente uma unica noute; mas Scrooge tinha suas duvidas a tal respeito, porque lhe pareceu que muitas festas de Natal tinham sido reunidas no espaço de tempo que tinham passado juntos. Dava-se tambem o caso extraordinario de que em quanto Scrooge não soffria a menor alteração na sua forma exterior, o Espirito hia envelhecendo a olhos vistos, Scrooge observára esta mudança, mas nunca n'ella fallára, até que, ao sahirem de certo logar onde algumas creanças celebravam o dia de Reis, lançando os olhos sobre o Espirito, quando a sós, notou que os cabellos lhe tinham encannecido.

— É assim tão curta a vida dos Espiritos? perguntou elle.

— A minha vida neste mundo, é muito curta, replicou o Espirito; termina hoje.

— Hoje! exclamou Scrooge.

— Hoje á meia noite. Silencio, approxima-se a hora.

Naquelle momento os sinos das torres marcavam os tres quartos depois das onze.

— Perdoai-me se a minha pergunta fôr indiscreta, disse Scrooge olhando attentamente para a tunica do Espirito, mas vejo o quer que seja extraordinario, e que vos pertence, sahindo por debaixo da orla da vossa tunica. É um pé ou uma garra!

— Pode muito bem ser uma garra, a julgarmos pela carne que a cobre, foi a resposta melancolica do Espirito. Olhai.

Das dobras da tunica tirou duas creanças miseraveis, abjectas, de horrivel apparencia, e repugnantes.

Ajoelharam-se ambas a seus pés e seguraram-se-lhes á tunica.

— Oh! homem, olha, olha a teus pés! exclamou o Espirito.

Eram um rapaz e uma rapariga, ambos macilentos, magros, esfarrapados, ferozes apesar de humildes na sua posição.

Aonde uma mocidade graciosa lhe devera ter conpletado as feições, e tel-as retocado com as suas mais frescas tintas, uma mão rugosa e encarquilhada, como a do tempo tenha-os emmagrecido e enfezado. Alli onde os anjos deviam ter firmado seus thronos, reinavam os demonios lançando olhares d'ameaça e maldição.

Nenhuma mudança, nenhuma degradação, nenhuma decomposição da humanidade, em qualquer grau, atravez de todos os maravilhosos mysterios da creação produziu monstros tão horriveis e tão maus.

Scrooge deu alguns passos á rectaguarda, pallido de horror.

Como as creanças lhe tinham sido mostradas pelo Espirito, procurou dizer que eram bonitas, mas as palavras falleceram-lhe na garganta, antes de se tornarem cumplices de tão enorme mentira.

— Dizei-me Espirito! são vossos filhos? Scrooge nada mais pedia dizer.

— São filhos dos homens, disse o Espirito olhando para as creanças. Fogem para mim queixando-se de seus pais. Este rapaz é a Ignorancia, aquella rapariga a Miseria. Acautelai-vos de ambos, e de toda a sua geração, mas sobretudo daquelle rapaz, porque na sua fronte vejo escripta a palavra condemnação. Apressa-te a offuscar tal palavra, ó humanidade, exclamou o Espirito apontando para a cidade. Nega a tua culpabilidade se podes; calumnia até os que te accusam, admitte tal desculpa para teus abominaveis fins! Mas guarda-te do futuro!


— Pois elles não teem nenhum refugio, nenhum recurso? perguntou Scrooge.

— Então não existem as prisões? disse-lhe o Espirito ironicamente, retorquindo-lhe pela ultima vez com as proprias palavras de Scrooge. Não existem as casas de trabalho?

Soou meia noite.

Scrooge procurou em redor de si o Espirito e já o não viu.

Quando a ultima badalada cessou de vibrar, recordou-se da predicção de Jacob Marley, e levantando os olhos, viu um Phantasma solemne, embrulhado n'um grande capote de capuz, approximando-se em direcção a elle, como o nevoeiro rastejando a terra.


ESTROPHE IV


O ultimo dos Espiritos


O Phantasma approximou-se devagar, com ar grave e silencioso.

Quando chegou junto de Scrooge, este ajoelhou porque o Espirito parecia espalhar pela atmosphera que cruzava, o terror e o mysterio.

Uma comprida tunica escura cobria-o de cima a baixo, occultando-lhe a cabeça, o rosto e a forma, e deixando unicamente visivel um braço estendido, sem o que teria sido difficil differenciar esta figura das sombras da noite, e distinguil-a entre a escuridão que a cercava.

Scrooge conheceu bem que o Espectro quando se approximou era de estatura elevada e magestosa, e que a sua mysteriosa presença o enchia de um terror solemne.

Nada mais sabia porque o Espirito nem fallou nem se moveu.

— Estarei acaso na presença do Espirito do Natal futuro, disse Scrooge.

O Espirito não respondeu e continuou a apontar a mão.

— Deveis mostrar-me as sombras das coisas que ainda não aconteceram, mas deverão acontecer no tempo futuro, proseguiu Scrooge; não é verdade Espirito?

A parte superior da tunica contrahiu-se por um momento, nas suas dobras, como se o Espirito tivesse inclinado a cabeça. Foi a unica resposta que Scrooge obteve.

Supposto que já acostumado á sociedade dos Espiritos, Scrooge, n'esta occasião receiou tanto o silencio que as suas pernas principiaram a tremer, e conheceu ser-lhe custoso suster-se em pé quando se preparou a seguir o Phantasma.

Este parou um momento, como observando o estado de Scrooge, e dando-lhe tempo para recuperar as forças.

Mas nem por isso Scrooge conservou mais sangue frio; um terror vago e desusual lhe fazia estremecer os membros, ao lembrar-se que detraz d'aquella sombria mortalha dois olhos de phantasma estavam attentamente fixados sobre elle, e que, apezar de todos os seus exforços, nada mais podia vêr do que uma mão d'espectro e um vulto escuro.

— Espirito do futuro! exclamou elle, temo-vos mais do que qualquer dos outros espectros que vi. Mas como eu sei que a minha felicidade é a vossa mira, e como espero viver para ser um homem totalmente differente do que fui, estou prompto a acompanhar-vos com o maior reconhecimento no coração.

Dar-se-ha caso que me não queiraes dirigir uma unica palavra?

O espectro não lhe deu palavra. A mão continuou a estar estendida para a frente.

— Guiai-me! disse Scrooge. Guiai-me, a noite vai-se adiantando, e o tempo torna-se-me precioso, bem o sei. Guiai-me Espirito.

O phantasma affastou-se do mesmo modo que tinha chegado. Scrooge seguiu-lhe a sombra da tunica, que parecia levantal-o e leval-o longe.

(Continua)