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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE V


Fim da historia


(Continuado do n.º 21)

Não tinha dado muitos passos quando viu dirigindo-se a elle aquelle cavalheiro de maneiras distintas, que no dia antecedente lhe entrara no escriptorio e lhe dissera: «Scrooge & Marley, julgo eu?» Sentiu uma dor pungente ferir-lhe o coração ao pensar no modo como aquelle le sugeito o olharia quando se vissem; mas comprehendeu a vereda que devia trilhar, e não se affastou d'ella.

— Meu caro senhor, disse Scrooge apressando o passo, e agarrando em ambas as mãos do cavalheiro. Como passa? Estimo que hontem fosse bem succedido? Faz-lhe muita honra o seu proceder. Alegres festas, caro snr.!

— Fallo com o snr. Scrooge?

— Sim senhor. — É esse o meu nome, e receio bem que lhe não seja agradavel. Permitta-me que lhe peça perdão pelo meu comportamento de hontem. Quer ter a bondade de — (aqui Scrooge segredou-lhe ao ouvido).

— Será possivel, meu Deus! exclamou o outro quasi sem poder tomar folego. Falla serio, meu caro snr. Scrooge?

— Muito serio, respondeu este; nem um farthing menos. Esteja certo que não faço mais que saldar dividas atrazadas. Quer-me fazer esse obsequio?

— Meu caro senhor, disse o outro apertando-lhe a mão, não sei como elogiar tal munifi...

— Não pronuncie mais palavra a tal respeito, interrompeu Scrooge. Vá a minha casa. Quer ir?

— Se quero! exclamou o cavalheiro. E na verdade tencionava fazer o que dizia.

— Obrigado, disse Scrooge, fico-lhe muito obrigado, agradeço-lhe mil vezes. Adeus.

Scrooge entrou nas igrejas, passeou nas ruas, contemplava o povo caminhando para cima e para baixo, ameigava as creanças, questionava os mendigos, e deitava olhares de satisfação para as cosinhas e para as janellas das salas; e tudo o que via lhe causava prazer.

Nunca sonhara que um passeio — que coisa alguma, para melhor dizer — o podesse tornar tão satisfeito.

No fim da tarde dirigiu os passos para casa de seu sobrinho. Passou á porta uma duzia de vezes antes de ter a coragem de levantar a aldrava. Refez-se de coragem e bateu:

— O amo está em cada, minha linda, disse Scrooge á creada. Bella creatura!

— Está, sim senhor.

— Onde está elle, meu amor? disse Scrooge.

— Está na sala do jantar com a senhora. Queira entrar para a sala de visitas.

— Obrigado. Elle conhece-me, disse Scrooge com a mão já pousada no trinco da sala do jantar. Eu entro, menina.

Levantou o trinco devagarinho, e metteu a cabeça pela porta entreaberta.

Os dois esposos estavam contemplando a mesa, lindamente adornada, porque os recem-casados são pechosos na elegancia do serviço, e gostam de vêr cada coisa no seu logar.

— Fred! disse Scrooge.

Valha-nos Deus! como elle fez estremecer a sobrinha por afinidade! Scrooge esquecera-se momentaneamente de que aquella senhora estava sentada a um canto sobre um tamborete, ou de certo não appareceria assim de subito.

— Que vejo!... exclamou Fred! ou estou louco ou é...

— Sou eu mesmo. É o teu tio Scrooge. Venho jantar comtigo. Deixas-me entrar, meu Fred?

— Deixal-o entrar!...

Foi uma felicidade o sobrinho não deslocar o braço do tio, á força de cumprimetos.

Em menos de cinco minutos Scrooge estava como em sua casa. Nada podia ser mais cordial. A esposa de Scrooge não se constrangeu; nem Topper, nem a menina do enfeite quando chegaram. Todos estavam á vontade.

Passou-se uma noite magnificamente.

Scrooge, no dia seguinte, appareceu muito cedo no seu escriptorio; muito cedo, muito cedo.

Se elle tivesse podido ser o primeiro a chegar, e ter pilhado Bob Cratchit sem ter vindo e com demora! Era isso exactamente o que premeditara.

E pilhou-o, pilhou-o! O relogio bateu as nove; — e Bob sem vir. Um quarto mais — e nada de Bob.

O desgraçado chegava atrazado os seus dezoito minutos e meio.

Scrooge sentou-se á escrivaninha do gabinete com a porta aberta, para o vêr entrar na cisterna.

Bob antes d'abrir a porta descobriu-se e tirou a manta d'agasalho do pescoço. N'um amen sentou-se no tamborete, movendo a penna apressadamente, como se desejasse alcançar as nove horas.

— Olá, grunhiu Scrooge com a sua voz costumada, tanto quanto a podia fingir. Então isto são horas d'apparecer no escriptorio?

— Não sabe v. s.ª quanto sinto ter chegado mais tarde, disse Bob.

— Mais tarde! com effeito, parece-me que não veio muito cedo! Chegue aqui, faz favor.

— É somente uma vez por anno, disse Bob timidamente sahindo da cisterna. Não repetirei. Diverti-me hontem um pouco!...

— Pois bem, meu amigo, disse Scrooge, permitta-me que lhe diga que não deixarei caminhar as coisas como caminham. Portanto, continuou elle saltando d'um pulo abaixo do tamborete, e applicando um soffrivel piparote no collete de Bob a ponto de o fazer recuar até á cisterna, portanto vou-lhe augmentar o ordenado!

Bob julgou-o doudo, estremeceu e chegou-se o mais perto possivel da regoa. A primeira ideia que lhe atravessou a mente foi de desancar Scrooge com ella, depois segural-o, e chamar gente para o ajudar a vestir-lhe a camizola de força.

— Boas festas Bob, disse Scrooge, com serenidade que não podia ser tomada e sentido contrario, e batendo-lhe no hombro. Festas alegres, Bob, e mais alegres do que te tenho desejado por muitos annos! Hei-de augmentar-lhe o ordenado, e auxiliar a sua pobre familia; havemos de discutir os seus negocios esta noite, com a ajuda d'um bom copo de fumegante bishop[1]. Acende ambos os fogões, Bob Cratchit, mas antes d'escreveres mais uma letra, vai comprar um balde novo para o carvão.



Scrooge não só cumpriu a sua palavra, mas foi muito alem, — muito alem, e para Tiny Tim, que realmente não morreu, foi um segundo pai.

Tornou-se tão bom amigo, tão bom amo, e tão bom homem, como o burguez reconhecido por melhor na boa e antiga cidade de Londres, ou em outra qualquer boa e antiga cidade, villa ou aldeia, de qualquer parte do bom e antigo mundo.

Algumas pessoas riam-se da mudança de Scrooge, mas elle deixava-os rir, e pouco se importava, porque não era tão ignorante que não soubesse que as melhores coisas desta mundo começam sempre por fazer rir alguem. Conhecendo que essas pessoas inevitavelmente se mostrariam cegas, pensou comsigo que melhor era que a enfermidade dellas se exhibisse pelas rugas que lhes fazia contrahir á força das risadas, do que de qualquer modo mais repellente.

Elle proprio rio do fundo d'alma, e era essa toda toda a sua vingança.

Não teve mais relações com os Espiritos, mas em compensação contrahiu mais os laços d'amisade com os seus similhantes, e disse-se delle, que ninguem melhor sabia festejar o bom tempo do Natal.

Possa dizer-se outro tanto com verdade de nós todos!

E como muito bem disse Tiny Tim:

«Deus nos abençoe em quanto existimos.»

VERSÃO DE A. C.

  1. Especie de ponche.