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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA

CONTO PHANTASTICO

DO NATAL

POR

CHARLES DICKENS

(Versão do original inglez)


ESTROPHE I


O espectro de Marley


(Continuado do n.º 291)


— Ora deixa-me em paz com o teu Natal, disse Scrooge. Ha-de-te dar muito proveito, não tem duvida! E muito bem te ha de ter feito já... ah! ah!

— Ha milhares de coisas, confesso, exclamou o pobre sobrinho, de que poderia tirar algum bem, e que pouco ou nada me tem aproveitado; e o Natal é uma dellas. Mas tenho a ceteza de ter contemplado o dia de Natal, quando apparece — pondo de parte a veneração devida ao seu nome e origem sagrada, se taes cousas se podem pôr de parte fallando-se do Natal — como um dia de felicidade, de perdão para todos os nossos erros, dia de caridade para com os nossos similhantes; o unico dia, que eu saiba, do longo kalendario do anno em que homens e mulheres parecem, por unanime consentimento, patentear os arcanos dos seus corações, e reconhecer nas outras creaturas de condição inferior verdadeiros companheiros de viagem na estrada do tumulo, e não viandantes dirigindo-se a differente logar. É por isso, meu tio, que apesar do Natal não me ter mettido no bolso a mais pequena moeda de ouro ou prata, acredito que me faz bem, e ainda me fará; e repito do fundo do coração: Viva o santo Natal!

O caixeiro lá no seu cantinho applaudiu involuntariamente, mas reconhecendo no mesmo instante que commettera uma inconveniencia, principiou a atiçar o fogo, não fazendo mais do que apagar a ultima faisca que existia ainda.

— Que eu ouça o menor ruido desse lado, e você vai festejar o Natal para o meio da rua. Vocemecê, snr. meu sobrinho, disse Scrooge, disse Scrooge voltando-se para elle, está-se tornando um orador de mão chêa. Não sei como não vai fazer discursos para o parlamento!...

— Não se afflija, meu tio, exclamou o sobrinho de Scrooge, amanhã ha de ir jantar comnosco.

Scrooge resmoneou palavras sem nexo e depois soltou a praga mais horrenda, mandando-o ah! nem quero dizer o resto!

— Mas porque? meu tio, porque?

— Para que te casaste? perguntou Scrooge.

— Porque estava namorado.

— Namorado! namorado! resmoneou Scrooge, como se fosse o amor a coisa mais ridicula deste mundo — mais do que as festas do Natal — Boas noites!

— Mas o tio nunca me foi vêr antes de eu casar, e para que dá agora esse motivo como razão de não ir a minha casa?

— Boas noites! disse Scrooge.

— Eu não quero nada do tio; não lhe peço nada; porque não seremos amigos?

— Boas noites! disse Scrooge.

— Acredite que estou bem penalisado pelo vêr com tal resolução. Nunca disputamos um com outro, pelo menos que eu fosse a causa! Fiz esta tentativa para honrar o Natal, e guardarei o meu bom humor até ao fim. Tenha festas alegres, meu tio.

— Boas noites! disse Scrooge.

— Desejo-lhe um anno feliz!

— Boas noites! exclamou Scrooge fóra de si.

Não obstante a má recepção, o sobrinho sahiu do escriptorio sem soltar uma palavra de descontentamento. Parou á porta da entrada para dar as boas festas ao caixeiro que, apesar de gelado, tinha mais calor do que Scrooge, porque retribuiu o cumprimento cordialmente.

— Alli está um outro pateta, murmurou Scrooge, que o ouvira do logar em que estava; o meu caixeiro tem quinze shillings por semana, está sobrecarregado de mulher e familia e falla de festas alegres. Isto é de um homem dar em doido!

O pateta do caixeiro, como lhe chamava o patrão, tendo deixado sahir o sobrinho de Scrooge, mandou entrar dois sugeitos. Eram dois cavalheiros na apparencia, com physionomias insinuantes, que com os chapéos na mão se conservavam agora de pé no escriptorio de Scrooge. Traziam nas mãos livros e papeis, e cumprimentaram.

— Scrooge & Marley, julgo eu? disse um delles procurando na lista. Tenho a honra de fallar com o snr. Scrooge, ou com o snr. Marley?

— O snr. Marley morreu ha sete annos, disse Scrooge. Falleceu faz esta noite exactamente sete annos.

— Não temos duvida alguma em que a sua generosidade estará bem representada pelo socio sobrevivente, disse o cavalheiro apresentando as suas credenciaes.

Certamente que estava; porque os dois socios pareciam sempre professar as mesmas ideias. Á palavra de mau agouro «generosidade» Scrooge carregou o sobrolho, meneou a cabeça, e tornou a restituir o papel.

— N'esta festiva estação do anno, Mr. Scrooge, disse o cavaleiro, pegando n'uma penna, é mais necessario do que no tempo usual, fazermos algumas parcas provisões para os pobres, e infelizes, que soffrem immenso n'esta quadra em que estamos. Quantos milhares de desgraçados não carecem do necessario para a vida? ah! senhor, milhares de pessoas não conhecem o minimo conforto.

— Não ha cadeias então? perguntou Scrooge.

— Ha immensas, retorquiu o outro deixando cahir a penna.

— E as casas de trabalho, perguntou Scrooge, já acabaram?

— Oxala que tivessem acabado!

— Então não está em vigor a lei dos pobres? perguntou Scrooge.

— Está, está; e tem que fazer de sobra.

— Oh! eu tinha bem receio, pelo que o senhor me disse a principio, de que alguma coisa tivesse feito parar o curso d'essas uteis instituições; estimo bem ouvir o contrario.

— Sob a impressão de que essas insituições escassamente poderão fornecer uma satisfação christã corporea, e espiritual ás multidões, replicou o cavalheiro, alguns de nos tratamos d'arranjar donativos para comprarmos para os necessitados alguma carne e cerveja, e darmos-lhes os meios de se aquecerem. Escolhemos esta occasião, porque é o tempo, de todo o anno, em que a necessidade se faz mais sentir, e a abundancia mais alegra o espirito. Quanto deverei marcar na lista?

— Nada! replicou Scrooge.

— Não deseja vêr o seu nome; quer que ponha anonymo?

— O que eu queria era que me deixassem em paz. Visto que os senhores me perguntam o que eu quero, é esta a minha resposta. Eu proprio não festejo o Natal, e por tal motivo não quero servir d'instrumento para que os vadios se divirtam. Gosto d'auxiliar os estabelecimentos que ha pouco mencionei; custam bastante; e aquelles a quem lhe não servir, que vão para o meio da rua.

— Muitos não podem alli ser admittidos; e outros antes prefeririam morrer.

— Se querem morrer, disse Scrooge, muito bem fariam em pôr essa ideia em execução quanto antes, e diminuir assim a população que é em demasia. — Demais, queiram desculpar-me, nada sei com relação ao objecto de que me fallam.

— Mas ser-lhe-ia facil informar-se, observou um dos cavalheiros.

— Não tenho nada com isso, retorquiu Scrooge. Já não é pouco para um homem estar em dia com os seus negocios, e não interferir com os dos outros. Boas noites, meus senhores.

Vendo claramente que debalde proseguiriam nos seus pedidos os dois sugeitos retiraram-se.

Scrooge entregou-se de novo ao trabalho mais contente comsigo, e com o espirito mais alegre do que d'ordinario.

Entretanto o nevoeiro, e a escuridão de tal modo tinham augmentado, que se viam aqui e alli pessoas com archotes acesos, offerecendo os seus serviços aos cocheiros, para levarem os cavallos dos carros á mão, e guial-os no caminho. A antiga torre d'uma igreja, cujo velho sino roufenho parecia estar sempre espreitando Scrooge atravez d'uma fenda da sua janella gothica aberta no muro, tornou-se invisivel; e o sino começou a soar as horas e os quartos nas nuvens, com tremulas vibrações prolongadas, co se os dentes lhe rangessem na sua cabeça gelada lá em cima. O frio tornou-se intenso.

Na rua principal, ao canto do pateo, varios operarios estavam reparando os canos do gaz, e tinham accendido uma grande fogueira em volta da qual estavam reunidos alguns homens e rapazes esfarrapados, aquecendo as mãos e empiscando os olhos de contentamento. Esqueceram-se de fechar a torneira e esta começou de deixar correr a agua, que se transformou em gelo misanthropico.

As luzes brilhantes das lojas, onde se viam deslumbrantes os puddings e outros acepipes, lançavam um reflexo avermelhado sobre os transeuntes.

As lojas dos vendilhões d'aves e dos tendeiros tinham-se de tal forma transformado que parecia impossivel ser simplesmente o desejo de fazer bom negocio a causa d'este luxo desusado. O Lord Mayor no seu palacio de Mansion-House dava ordens aos seus cincoenta cosinheiros e dispenseiros para que o Natal fosse festejado como deve ser na casa d'um Lord-Mayor; e até o pobre remendão que elle multara na segunda feira antecedente por ter sido encontrado em estado de embriaguez, e commettendo desordens na rua, até esse preparava o pudding do dia seguinte na sua trapeira, em quanto que a magra esposa com os filhinhos, sahia para ir comprar a carne necessaria.

Cada vez mais nevoeiro e mais frio! Frio aspero, penetrante! Se o bom S. Dunstan[1] tivesse beliscado o nariz do Espirito das Trevas, com um poucochinho d'um tempo como este, em lugar de usar as suas armas familiares, não ha a menor duvida de que o diabo teria soltado uivos infernaes. O possuidor d'um narisito novo, roido e chupado pelo esfomeado frio do mesmo modo que os ossos são roidos pelos cães, abaixou-se em frente do buraco da fechadura de Scrooge para o regalar com uma cantiga do Natal; mas ás primeiras palavras de

Boas festas meu senhor

Boas festas Deus lhe dê

Scrooge agarrou na regra com um gesto tão energico, que o cantozinho fugiu assustado, deixando a fechadura á mercê do nevoeiro e do gelo.

(Continua.)

  1. S. Dunstan, santo inglez que viveu no oitavo seculo. Contam as lendas, que sendo este santo tentado pelo principe das trevas, e já fatigado com os argumentos de tão ruim visitante, com uma tenaz em braza, segurara o nariz do demonio e o levara para uma janella onde esteve exposto á irrisão do publico. (Nota do Traductor.)