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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE I


O espectro de Marley


(Continuado do n.º 293)


Chegou emfim a hora de se fechar o escriptorio.

Scrooge desceu do seu tamborete com ar de mau humor, concedendo assim tacita licença, para se ir embora, ao caixeiro que a aguardava no seu becco.

Este immediatamente apagou a vella e poz o chapeu.

— Supponho que quer todo o dia d'ámanhã para si? disse Scrooge.

— Se assim convem a v. s.ª...

— Não me é conveniente, disse Scrooge, e não é bonito. Aposto que se lhe descontasse meia corôa por esse dia, vmc.e havia de julgar-se lesado?

O caixeiro sorriu-se levemente.

— E no entanto, continuou Scrooge, vmc.e não me julga lesado por eu lhe pagar um dia para não fazer nada?

O caixeiro observou que era um caso extraordinario e que se dava tão sómente uma vez por anno.

— É uma desculpa muito fraca para limpar a algibeira de um homem todos os dias 25 de dezembro, disse Scrooge abotoando o casacão até acima.

— Mas emfim, continuou elle, fique lá com o dia inteiro; tracte comtudo de me desforrar vindo depois d'ámanhã mais cedo.

O caixeiro prometteu que sim e Scrooge sahiu resmoneando.

Fechou-se o escriptorio n'um momento, e o caixeiro com as duas pontas da manta de lã do pescoço chegando até á cinta (porque o misero não professava o uso do paletot) principiou a escorregar no gelo, no passeio de Cornhil, umas vinte vezes, atraz de uma malta de gamenhos em honra da vespera do Natal, e em seguida dirigiu-se de uma corrida a sua casa em Camdem-Town, para jogar á cabra-cega.

Scrooge enguliu o seu o seu melancholico jantar na usual casa de pasto; e, depois de ter lido todos os jornaes, e se ter entretido o resto da noite com o livro das letras, foi para casa deitar-se.

Vivia no alojamento occupado outr'ora pelo seu fallecido socio.

Era uma serie de quartos escuros, fazendo parte de um sombrio edificio na extremidade de uma rua, onde estava tão fora de proposito, a ponto da gente não podêr deixar de imaginar, que aquella casa veio para alli algum dia que, na sua mocidade, jogou ás escondidas com as outras casas visinhas, e não pôde tornar a encontrar o caminho.

o edificio era agora bastante idoso, e assaz triste, porque ninguem vivia n'elle, á excepção de Scrooge; os outros quartos estavam todos alugados para escriptorios.

O pateo estava tão escuro que o proprio Scrooge, conhecendo-o palmo a palmo, viu-se obrigado a entrar ás apalpadellas.

O nevoeiro e o gelo de tal modo envolviam a sombria e velha porta da casa, que parecia que o genio da estação estava sentado no limiar em profunda meditação.

Diga-se agora em abono da verdade que nada havia de particular no martello da porta senão que era muito grande.

É um facto tambem muito veridico que Scrooge o tinha visto de dia e de noite durante toda a sua residencia n'aquelle logar; e tambem Scrooge tinha tão pouco do que se chama força d'imaginação como qualquer homem na City, incluindo mesmo — o que é uma temeridade da minha parte dizel-o — a corporação, os aldermen, e os notaveis.

Devemos tambem estar bem possuidos da ideia de que Scrooge não tinha pensado mais em Marley, desde aquella occasião, de tarde, em que mencionara a morte do seu antigo socio havia sete annos.

E agora explique-se alguem, se pode, como succedeu que Scrooge, tendo mettido a chave na fechadura da porta, viu no martello, sem fazer uso d'alguma formula magica, não um martello, mas a cara de Marley?

A cara de Marley, sim senhores! Não era uma sombra impenetravel como os outros objectos no pateo, mas cercava-a uma luz sombria, do mesmo modo que uma lagosta pôdre n'uma adega escura. A expressão da physionomia não dava signaes d'ira ou de ferocidade, mas contemplava Scrooge como Marley costumava, com oculos d'espectro erguidos na sua testa de defuncto. O cabello de Marley estava exquisitamente levantado como se fôra por effeito d'um sopro ou vapor quente; e os olhos apesar de estarem abertos, não tinham movimento algum. Esta circumstancia e a sua côr livida tornavam-no horrivel; mas o horror que se sentia ao contemplal-o, parecia provir antes da expressão da physionomia, do que da figura do morto.

Á medida que Scrooge olhava fixamente para este phenomeno, nada mais vida do que um martello.

Seria faltar á verdade, se dissesse que elle não estremeceu, ou que o seu sangue não persentiu uma terrivel sensação que lhe fôra estranha desde a infancia.

Novamente poz a mão sobre a chave que a principio, largara, deu-lhe volta estouvadamente, deu um passo á frente, e accendeu a vella.

Pausou com irresolução momentanea antes de fechar a porta; e olhou para traz com cautella, primeiramente, como se esperasse vêr a figura de Marley apparecer no vestibulo. Mas nada havia atraz da porta, excepto os pregos e as dobradiças que seguravam o martello; de sorte que Scrooge disse «Puff! puff!» e fechou a porta com um arremesso. O barulho resoou em toda a casa como um trovão. Cada salla no andar de cima, e cada pipa nos armazens debaixo, do negociante de vinhos, pareciam formar um ecco separado. Scrooge não era homem que se assustasse com eccos; deu volta á chave, atravessou o pateo, e subiu as escadas devagarinho, arranjando e espevitando a vella á medida que caminhava.

Estão continuamente fallando das velhas escadarias que se construiam outr'ora, por onde podia subir á vontade um coche puchado a seis, ou o cortejo do parlamento; mas eu digo-lhes que a escadaria da casa onde residia Scrooge era maior que essas de que fallam; podia-se fazer subir á vontade uma diligencia com a lança para um lado do muro, e a porta do carro para o outro lado, e muito facilmente. Havia immenso lugar para essa operação, e ainda crescia espaço. Meia duzia de bicos de gaz do tamanho dos da rua, não teriam sido sufficientes para illuminarem o vestibulo; imaginem por isto a claridade que lhe daria a froixa luz da vella de Scrooge!

Scrooge continuava a subir sem dar a essas coisas a mais pequena importancia; a escuridão é barata, e Scrooge estimava-a por essa razão. Mas antes de se decidir a fechar a pesada porta, passeiou atravez das sallas a fim de vêr se tudo estaria no seu lugar, em consequencia talvez de se recordar da mysteriosa figura.

A salla de visitas, o quarto de dormir e a sala d'espera, estavam como deviam estar. Ninguem estava debaixo da mesa, nem do sophá; no fogão alguns carvões accesos; colher e chavena promptos; e sobre a trempe uma chocolateira com agua de cevada (porque Scrooge achava-se endefluxado). Ninguem appareceu debaixo da cama, na cozinha não viu ninguem, nem tão pouco dentro do roupão, que estava dependurado na parede, em attitude suspeita.

A salla de vestir tinha a apparencia ordinaria. Uma grade de fogão velha, sapatos velhos, lavatorio sobre tres pernas e um atiçador.

Scrooge completamente satisfeito com as suas pesquizas cerrou a porta e fechou-se por dentro, a duas chaves contra o seu costume. Julgando-se assim a salvo de qualquer surpreza, tirou a gravata, enfiou o roupão, calçou os chinellos, e sentou-se em frente do fogão para tomar o cozimento de cevada;

O fogo estava quazi extincto; pouco ou nada era para noite tão fria. Foi obrigado a conchegar-se, e quazi acocorinhar-se sobre elle, para poder extrahir a mais diminuta sensação de calor, daquella pitada de carvão. O fogão era muito velho, naturalmente mandado fazer ha muito tempo por algum negociante hollandez, e guarnecido em volta com exquizitos ladrilhos hollandezes, reprezentando scenas da Escriptura. Havia alli Cains e Abeis; filhos de Pharaó, Rainhas de Sabá, Mensageiros angelicos descendo atravez do ar sobre nuvens, como sobre camas de pennas, Abrahões, Balthasares, Apostolos embarcando-se em bateis com forma de manteigueiras centos de figurinhas, para attrahir as ideias de Scrooge; e não obstante a physionomia de Marley, morto ha sete annos, vinha como a antiga vara do Propheta absorver o resto. Se cada um dos ladrilhos começasse por estar em branco e tivesse o poder de formar na superficie uma figura com os varios pensamentos de Scrooge, não haveria duvida que em cada ladrilho se veria uma copia da cabeça de Marley.

— Asneiras! disse Scrooge; e principiou a passear d'um lado para outro da salla.

Depois de varios passeios a todo o comprimento da salla, sentou-se de novo. Na occasião em que recostava a cabeça na cadeira, o seu olhar fixou-se casualmente sobre uma campainha, uma campainha desusada suspensa na salla, e communicando, para algum fim agora esquecido, com o quarto no ultimo andar da casa.

Foi com grande pasmo, e com susto extraordinario e inexplicavel que viu a campainha principiar a bambaliar-se. A principio tão devagarinho se movia, que nem sequer dava o menor som; mas não tardou muito que principiasse a soar alto, sendo correspondida por cada campainha na casa.

Não durou isto mais que meio minuto ou quando muito um minuto, mas esse tempo pareceu a Scrooge uma hora. As campainhas cessaram ao mesmo tempo, exactamente como tinham principiado. Succedeu-lhe um tinido de ferros, procedendo das partes subterraneas da caza, assim a modo d'alguma pessoa que estivesse arrastando uma pesada cadeia sobre as pipas da adega do negociante de vinhos. Scrooge recordou-se então de ouvir dizer que as almas do outro mundo nas casas onde appareciam, costumavam sempre arrastar cadeias.


Ouviu-se abrir a porta d'adega com grande barulho, e depois seguiu-se ruido nas escadas do fundo, em seguida mais acima, e finalmente proximo á porta do quarto.

— Asneiras! murmurou Scrooge; eu não acredito n'essas coisas!

Mudou todavia de côr quando n'um momento, sem a menor pausa, o phantasma passou atravez da pesada porta, e veio collocar-se-lhe no quarto mesmo em frente dos seus olhos. No momento em que elle entrou a chamma amortecida fulgurou, como para dizer: «Conheço-o bem: é o expectro de Marley!» e extinguiu-se de todo.

Aquelle era o mesmo rosto d'elle, exactamente o mesmo.

(Continua.)