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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
(Continuado do n.º 297)


ESTROPHE II


O primeiro dos tres espiritos


Quando Scrooge acordou, fazia tão escuro, que olhando para fóra do leito, a custo podia distinguir a janella transparente, das paredes opacas do quarto, Esforçava-se em trespassar a escuridade com o seus olhos de furão, quando o carrilhão d'um relogio visinho bateu quatro quartos. Poz-se á escuta.

Com grande pasmo seu o pesado sino caminhou das seis ás sete, e das sete ás oito, e assim regularmente até completar doze toques; então parou. Meia noite!

Já passavam de duas horas quando Scrooge se deitára. O relogio por força estava estonteado. Algum pedaço de gelo se tinha introduzido no machinismo! Meia noite!

Scrooge tocou na molla d'um relogio de repetição que tinha á cabeceira do leito para corrigir aquelle relogio prepostero da terra. O rapido martelinho do relogio bateu na campainha doze vezes... e parou.

— Como! não é possivel! disse Scrooge. Terei eu dormido um dia inteiro, e ainda em cima parte da noite seguinte! Será possivel que tenha acontecido alguma coisa ao sol e que seja meia noite ao meio dia?

Sendo esta ideia bastante assustadora, o nosso heroe saltou abaixo da cama, e ás apalpadellas foi dirigindo-se para a janella. Viu-se na necessidade de limpar o gelo da vidraça, com a manga do roupão, para poder vêr alguma coisa; ainda assim muito pouco pôde distinguir. Percebeu tão somente, que ainda havia muito nevoeiro e muito frio, e que se não ouvia rumor de gente correndo para cima e para baixo, como tal seria inquestionavelmente o caso, se a noite tivesse expulsado o dia, e este se tivesse apossado do mundo. Foi isto um grande allivio para o bom do homem, porque verificando-se os seus pensamentos que valeriam as suas letras rezando «a tres dias vista pagará por esta minha primeira de cambio, ao sr. Ebenezer Scrooge ou á sua ordem» etc. etc.? Valeriam tanto como hypothecas feitas sobre as montanhas da lua.

Scrooge voltou para a cama, e pensou, pensou, pensou uma, duas, cem vezes no que lhe succedia, sem poder achar a chave do enygma.

Quanto mais pensava, tanto mais perplexo ficava; e quanto mais se esforçava em não pensar, tanto mais depressa os pensamentos lhe acudiam á mente.

O espectro de Marley incommodava-o horrivelmente.

Todas as vezes que resolvia interiormente, depois de maduro exame, não ser tudo aquillo mais que um sonho, o seu espirito, similhante á mola que cessa de ser comprimida, voltava á sua primeira posição, e apresentava o mesmo problema, para de novo ser resolvido.

«Tudo aquillo era um sonho, ou realidade?»

Scrooge jazeu neste estado até que os carrilhões soaram tres quartos mais; recordou-se então subitamente do espectro lhe ter prophetisado uma visita que devia receber quando o relogio da torre marcasse uma hora. Resolveu conservar-se acordado até que fosse passado esse tempo, e attendendo a que não lhe seria mais facil dormir do que ir para o ceu, foi indubitavelmente aquella a melhor resolução que podia tomar.

O quarto de hora durou tanto, que Scrooge chegou a convencer-se de que forçosamente tinha dormitado o seu bocado sem ter dado por isso, e de que não ouvira o relogio.

Este por fim feriu-lhe o ouvido attento.

— Dlin, dlon!

— Um quarto, disse Scrooge contando.

— Dlin, dlon!

— Meia hora.

— Dlin, dlon!

— Tres quartos!

— Dlin, dlon!

— Soou a hora, disse Scrooge com ar de triumpho; e nada apparece!

Scrooge fallou antes de bater a pancada que marcava a hora, e que se seguiu soando profunda e melancolicamente — UMA HORA!

No mesmo instante brilhou uma luz no quarto e os cortinados da cama foram puxados para o lado.

Os cortinados foram puxados para o lado. — como lhes digo, por uma mão. Não os cortinados aos pés nem á cabeceira, mas sim aquelles para onde Scrooge estava olhando. Os cortinados do leito ficaram abertos, e Scrooge erguendo-se na attitude d'uma pessoa meia deitada, achou-se face a face com o ente sobrenatural que os tinha puxado; tão perto d'elle como eu agora estou de vós, minhas amaveis leitoras e caros leitores, e notem que eu estou em espirito junto das vossas meninas dos olhos.

Era uma figura extraordinaria — assim a modo d'uma creança. E no entanto assemelhava-se menos a uma creança do que a um velho, visto através d'algum prisma sobrenatural, que lhe dava um ar de se ter affastado a distancia, e de ter ido diminuindo até ás proporções d'uma creança. O seus cabellos, que lhe cahiam pelas costas abaixo, eram brancos, como por effeito da idade; e todavia o rosto não apresentava uma só ruga, e na pelle brilhava o mais suave rosado. Os braços eram muito compridos e musculares; e as mãos igualmente, como se fosse dotado de uma força pouco commum. Os pés, formados mui delicadamente, estavam descalços e as pernas nuas como os membros superiores. O espectro trazia uma tunica do mais puro branco, prendendo-a um cinto luminoso brilhando admiravelmente. Na mão trazia um ramo d'azevinho cortado de fresco; e em singular contraste com aquelle emblema do inverno trazia o vestido adornado de flores do estio. Mas o mais extraordinario n'aquelle personagem era que da corôa da cabeça se espargia um jacto de luz brilhante e claro, que tornava tudo visivel: d'onde provinha sem duvida o uso que fazia, nos momentos de tristeza, em lugar de chapeu, d'um apagador que trazia debaixo do braço.

No entanto não era este o attributo mais extraordinario da apparição aos olhos de Scrooge, que a contemplava attentamente. Porque da mesma forma que o cinto ora brilhava e reluzia n'um lado ora n'outro, e o que era luz n'um momento, tornava-se trevas immediatamente; assim tambem a figura do espectro fluctuava diversamente, ora apparecendo um ente com um só braço, depois com uma só perna, ou com vinte; agora um par de pernas sem cabeça, mais tarde um corpo sem pernas; não deixando os membros, que desappareciam, ficar visivel na obscuridade um só contorno. Em seguida, por singular prodigio tornava-se de novo tão visivel e distincta como sempre.

— Sois acaso, o Espirito cuja vinda me foi profetisada? perguntou Scrooge.

— Sou!

A voz era suave e agradavel. Singularmente baixa, como se em logar de lhe sahir da garganta viesse de distancia.

— Quem sois vós? perguntou Scrooge.

— Sou o Espirito do Natal passado.

— Passado ha muito? inquiriu Scrooge notando a sua estatura d'anão.

— Não; o ultimo.

Talvez Scrooge não tivesse sabido dizer, se alguem lhe perguntasse, a razão porque tinha um desejo especial de ver o Espirito pôr o barreta na cabeça; e para satisfazer o seu capricho rogou-lhe que se cobrisse.

— Que! exclamou o Espirito, quererieis acaso extinguir com mão mundana a luz que espalho? Não será bastante já que vós sejaes um daquelles cujas paixões egoistas me obrigam a usar d'este chapéo e me forçam a travez dos seculos a trazel-o na cabeça.

Scrooge negou ter tido intenção de offender o Espirito, e ousou perguntar-lhe que negocio o trazia alli.

— A vossa felicidade.

Scrooge mostrou-se muito reconhecido, mas não pôde deixar de pensar que uma noite de repouso não perturbado, alcançaria aquelle fim mais depressa. De certo o Espirito lhe adivinhou o pensamento, porque lhe disse immediatamente:

— A vossa conversão então. Acautelai-vos.

Ao tempo que passava estendeu-lhe a sua possante mão e segurou-o por um braço.

— Levantai-vos e segui-me.

Debalde Scrooge teria allegado que o tempo e a hora não eram proprias para passeios a pé; que a cama estava quente e o thermometro alguma coisa abaixo do gelo; que estava vestido ligeiramente, apenas com as meias, roupão, e barrete de dormir; e que naquelle momento o incommodava um terrivel defluxo. O aperto do braço, ainda que ligeiro, como se fosse causado por uma mulher, não era todavia muito para se lhe resistir. Scrooge levantou-se; mas percebendo que o Espirito se dirigia para a janella, segurou-lhe a tunica em attitude supplicante.

— Sou um mortal, observou-lhe Scrooge, e por tanto posso cahir.

— Permitte sómente que eu ponha a mão ahi, disse o Espirito collocando-lha sobre o coração, e vencereis provações maiores do que esta.

Ao dizer estas palavras, passaram ambos atravez da parede e acharam-se n'uma estrada d'aldeia com campos d'um lado e d'outro.

A cidade tinha desapparecido completamente; não se via nem o menor vestigio d'ella. A obscuridade e o nevoeiro tinham desapparecido conjunctamente porque era um dia claro, e frio de hinverno, com neve por toda a parte.

— Deus do ceu! disse Scrooge, batendo ambas as mãos, e olhando em redor de si. Fui aqui creado. Passeo neste logar a minha infancia!

O Espirito olhou-o com bondade. O leve contacto ainda que instantaneo, tinha despertado a sensibilidade do velho. Este tinha a consciencia d'uma suave fragrancia na athmosphera, associada com milhares de pensamentos, d'esperanças, d'alegrias, de preoccupações olvidadas de ha muito.

— Tremem os vossos labios, disse o Espirito. E que é o que tendes sobre a face?

Scrooge, com a voz algum tanto tremula, disse que era um cravo; e pediu ao Espirito para que o levasse onde queria.

— Recordais-vos do caminho?

— Se me recordo! disse Scrooge calorosamente... Podia andal-o com os olhos fechados.

— É exquesito que o tivesseis, esquecido por tantos annos! observou o espirito. Caminhemos.

Continuaram a marchar na estrada, reconhecendo Scrooge cada poste, e cada arvore, até que appareceu em distancia uma pequena aldêa com a sua ponte, sua igreja, e com um ribeiro sinuoso. Naquelle momento viram-se trotando em direcção a elles alguns garranos de comprido pello, montados por buliçosos rapazes, que chamavam outross vindo em carros, governados por aldeões. Todos estes rapazes estavam muito alegres, e gritavam uns pelos outros, até que os campos ficaram tão cheios desta alegre muzica, que o ar em vibração ria de os ouvir.

— São apenas sombras do que foram, disse o espirito, nenhum desconfia da nossa presença aqui.

Os viajantes alegres adiantaram-se; e á medida que se approximaram, Scrooge reconheceu-os e pronunciou o nome de cada um d'elles.

Porque se alegrava elle, vendo-os? Porque lhe fulguravam os olhos, de ordinario sem movimento, e lhe batia o coração, quando elles passaram? Porque ficou elle saltando de jubilo, quando os ouviu desejar uns aos outros boas-festas, ao separarem-se nas encruzilhadas que os levavam cada um a sua casa? Que eram boas-festas para Scrooge? Fóra com o bom Natal! Que bem lhe fizera elle algum dia?

— A escolla ainda não está de todo deserta, disse o phantasma. Ainda alli está um pequeno solitario, esquecido pelos seus amigos.

Scrooge disse que reconhecia o logar, e suspirou.

Deixaram a estrada real, seguindo por um atalho bem conhecido de Scrooge, e dentro em pouco se aproximaram de uma construcção de tijollos vermelhos d'apparencia triste, com uma pequena cupola terminada por um catavento; sobre o tecto estava suspensa uma sineta.

(Continua)