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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE II


O primeiro dos tres espiritos


(Continuado do n.º 1)


Era uma vasta habitação, mas mostrando as vicissitudes da sorte, porque as suas espaçosas salas estavam pouco usadas, os muros estavam humidos e cobertos de musgo, as vidraças partidas e as portas despedaçadas. As galinhas cacarejavam e espanejavam-se nas cavallarices, e as cocheiras e os telheiros estavam sobrepejados de herva.

Nem no interior mostrava mais vestigios do seu antigo estado; porque ao entrar no sombrio vestibulo, e deitando um olhar atravez de varias portas abertas de differentes quartos. Scrooge e o Espirito encontraram-nos pobremente mobilados, frios e solitarios.

No ar sentia-se grande cheiro a mofo, e em toda a casa reinava uma mudez glacial, que deixara perceber as vigilias dos moradores, que se levantavam com lua para trabalhar, e não tinham que comer em abundancia.

Scrooge e o Espirito dirigiram-se atravez do vestibulo a uma porta situada nas trazeiras da casa; abriu-se a porta diante delles e deixou vêr uma sala comprida, melancholica e deserta, e tornada mais deserta ainda por uma fileira de bancos de pinho, e escrivaninhas da mesma madeira.

N'uma dellas, junto d'um fogo quasi extincto, estava lendo um rapaz que ficara só. Scrooge sentou-se sobre um banco e chorou, reconhecendo-se esquecido e abandonado como costumava ficar no tempo de rapaz.

Nem um unico ecco occulto na casa, nem o menor ruido dos ratos pelejando sobre o forro, nem o som da gota d'agua meia-gelada cahindo da torneira no pateo da casa, nem o suspiro do vento por entre os ramos do choupo desfolhado, nem o bater surdo da porta do vasio armazem, nem o ligeiro crepitar do fogo — deixavam de fazer sentir sua soce influencia no coração de Scrooge, que deu um mais livre curso ás suas lagrimas.

O Espirito tocou-lhe no braço e apontou-lhe para a creança — imagem representando Scrooge d'outr'ora lendo attentamente.

Subitamente um homem vestido exquisitamente, real e distincto á vista, appareceu em pé por detraz da porta de vidraça com uma machadinha á cinta, e conduzindo pelo freio um burro carregado de lenha.

— Aquelle é Ali-Baba! exclamou Scrooge extasiado; é o bom velho Ali-Babá. É elle — reconheço-o perfeitamente. N'um dia de Natal, em que eu quando era rapaz fiquei abandonado aqui só, veio elle justamente como agora. Pobre creança! E Valentim, e aquelle patife de seu irmão Orson; ahi vem tambem! E como se chama aquelle, que foi posto adormecido sem calças á porta de Damasco; não o vedes? É o lacaio do sultão deitado por terra pelos genios; alli está de cabeça para baixo. Tratem-no como merece. Para que precisava elle d'esposar uma princeza!

Grande surpreza teria sido para os collegas da City, se tivessem ouvido Scrooge despender todo o seu ardor natural em taes assumptos, n'uma voz exquisita, mixto de riso e lagrimas, e mais se admirariam vendo a animação que se lhe estampava no rosto.

— Ali está o papagaio! exclamou Scrooge, corpo verde, e rabo amarello, com uma coisa similhante a uma leituga sahindo-lhe da poupa. Pobre Robinson Crusoe, como elle o chamava, quando voltou a casa depois de ter navegado em volta da ilha.

«Pobre Robinson Crusoe, onde estiveste Robinson Crusoe?

O homem persuadiu-se que sonhava — mas não, não sonhava.

Era o papagaio que sabeis.

Eis-alli Sexta-feira correndo á bahia para salvar a vida.

Vamos, coragem, upa!

Então, com rapida tranzição, muito differente do seu caracter usual, disse, levado de piedade por aquelle outro elle:

— Pobre rapaz!

E exclamou de novo:

— Desejava... murmurou Scrooge mettendo a mão no bolso, e olhando em redor de si, depois de ter enxugado os olhos com a manga do casaco; mas é tarde agora.

— Que temos? perguntou o Espirito.

— Nada, disse Scrooge, nada. Na noite passada veio um rapaz cantar as lôas do Natal á minha porta.


«Desejaria ter-lhe dado alguma coisa; é isto unicamente.

O Espirito sorriu pensativamente e moveu a mão, dizendo:

— Veremos para o Natal seguinte.

A estas palavras, Scrooge viu a figura que o representava quando creança, a luz crescendo, e a salla tornar-se mais escura e mais suja.

Os caixilhos appareceram com fendas, as vidraças quebradas, fragmentos do estuque cahiram do tecto, e apresentavam-se despidas as ripas do travejamento; mas como se faziam estas transformações, era coisa que Scrooge sabia tanto como vós, estimaveis leitores.

Sabia tão sómente que tudo aquillo era exacto, que se passara tudo d'aquella forma; e que alli estava elle novamente só, quando todos os seus condiscipulos tinham ido passar as ferias com a familia.

Já não lia agora, mas passeiava desesperadamente de um para outro lado. Scrooge olhou para o Espirito, e com um movimento triste de cabeça, olhou anciosamente para a porta.

Abriu-se esta; e uma menina, mais nova que o rapaz, entrou para a salla rapida como uma seta, e enroscando os braços em volta do pescoço d'elle, disse: Meu irmãosinho, meu caro irmãosinho.

— Venho buscar-te para te conduzir a casa, meu irmãosinho, disse a menina batendo as mãosinhas uma contra a outra, e inclinando-se com a força do riso. Venho acompanhar-te para casa.

— Para casa Francisquinha? perguntou o rapaz.

— Sim, disse ella radiante d'alegria, para casa, para sempre, para sempre. O papá está tão differente do que era, que em casa agora está-se como no céo. Fallou-me com tão bom modo uma noite quando me ia deitar, que não tive medo de lhe pedir mais uma vez para te deixar vir a casa; e elle disse que sim, que virias; e mandou-me de carroagem para te levar. E tu vais ser um homem, acrescentou ella abrindo os olhos, e nunca mais voltarás aqui; mas primeiro vamos passar juntos a festa do Natal, e havemos de divertir-nos como ninguem.

— Tu estás quasi uma senhora, Francisquinha! exclamou o rapaz.

Ella bateu as mãos e riu-se; e procurou fazer-lhe meiguices na cabeça; mas sendo pequenina ainda, riu-se de novo, e poz-se em bicos de pés para abraçar o irmãosinho. Então com o afan proprio de creança, começou a empurral-o para a porta, e o rapaz sem se fazer muito rogado, acompanhou-a.

Uma voz terrivel no vestibulo, mesmo no vestibulo, exclamou: «Tragam para baixo o bahu do snr. Scrooge», e appareceu no vestibulo o mestre-escóla, que deitou sobre o pobre rapaz um olhar de condescendencia feroz, e fez-lhe perturbar o espirito com um aperto de mãos que lhe deu.

Introduzio-o em seguida, assim como a irmã na salla do rez do chão, a mais fria que existia, em que os mappas das paredes, e os globos celestes e terrestres nos vãos das janellas pareciam gelados de frio. Apresentou então aos dois irmãos uma garrafa de vinho muito ordinario, e um pedaço de cake já bastante rijo, e ao mesmo tempo mandou um creado d'apparencia despresivel offerecer um copo de «qualquer coisa» ao postilhão, que respondeu que ficava muito obrigado, mas que se o vinho era da mesma especie do que bebera antes, preferiria não beber nenhum. N'este meio tempo o bahu do menino Scrooge tinha sido collocado no tejadilho da carroagem; o menino e a irmã disseram adeos do fundo do coração ao mestre, e tendo entrado para o vehiculo atravessaram alegremente o jardim do collegio; as ligeiras rodas faziam saltar, como espuma, os pedaços de neve que cobriam o caminho.

— Foi sempre uma delicada creatura aquella menina, que o mais leve sopro poderia curvar, disse o Espirito; mas tinha uma magnanimo coração!

— Oh! se tinha!... exclamou Scrooge melancholicamente. Tendes razão. Não direi o contrario, Espirito. Deus me defenda.

— Morreu casada, disse o Espirito, e deixou duas creanças.

— Uma só, retorquio Scrooge.

— É verdade, disse o Espirito. É o vosso sobrinho.

Scrooge parecia constrangido, e apenas respondeu brevemente — «Sim».

Apezar de terem deixado a eschola n'aquelle momento, achavam-se já no centro agitado de uma cidade, onde passavam e repassavam sombras humanas; onde percorriam as ruas sombras de carros e carroagens, e havia o arruido real d'uma verdadeira cidade. Por objectos que se viam patentes nas differentes lojas, bem demonstrado ficava que aqui tambem se celebrava o natal n'aquelle momento. Era de noite e as ruas estavam illuminadas.

O Espirito parou á porta d'um armazem e perguntou a Scrooge se reconhecia aquelle logar?

— Se conheço! respondeu Scrooge. Foi aqui que eu dei o meu tempo de rapaz.

Entraram. Á vista d'um sugeito com grande cabelleira, sentado atraz d'uma escrivaninha tão alta, que se elle tivesse duas pollegadas mais de estatura bateria com a cabeça contra o tecto, Scrooge exclamou muito enthusiasmado:

— É o velho Fezziwig! Deus me perdoe; é Fezziwig ressuscitado.

O velho Fezziwig pousou a penna, e olhou para o relogio que marcava sete horas. Esfregou as mãos; apertou o casacão; riu-se todo desde os calcanhares até ás pontas dos cabellos, e chamou com voz forte, sonora, rica, cheia e jovial:

— Olá! Ebenezzer! Dick!

A figura do outro Scrooge, tornado agora já rapaz, entrou vagarosamente acompanhado do seu companheiro nas lides do negocio.

— É Dick Williams, não ha duvida! disse Scrooge ao Espectro. É elle, é elle, meu Deus! Era-me muito affeiçoado aquelle Dick! Pobre Dick, coitado!

— Olá meus rapazes, disse Fezziwig, nada mais de trabalho por hoje. É a vespera de Natal Dick. Boas festas Ebenezzer. Vá, fechem-se as portas n'um momento, accrescentou o velho Fezziwig batendo as mãos alegremente.

Ninguem acredita como n'um abrir e fechar d'olhos pozeram mãos á obra os dois rapazes. Carregaram com as portadas até á rua — uma, duas, tres, — collocaram-nas nos seus logares — quatro, cinco, seis — pozeram os ferrolhos, e as chavetas — sete, oito, e nove — e voltaram, antes que chegasseis e contar até doze, offegantes como cavallos de corridas.

— Olá! gritou o velho Fezziwig, deixando-se escorregar de junto da alta escrivaninha, com maravilhosa agilidade. Vamos a arrumar isto, e deixemos a sala livre aqui. Vamos Dick; anda depressa Ebenezzer.

(Continua.)