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e que, quando christão, seria livre, morando com os padres como si fosse filho d’elles.

Pelo interprete respondeo-me julgar-se feliz por haver cahido nas mãos dos Padres, tanto por conhecer á Deos como por viver com elles, e si fosse para o poder de outro chefe, não estaria socegado e nem descançado de não ser comido, porque, acrescentava elle, quando se morre, nada mais se sente, quer elles comam ou não, e o mesmo para o morto: amofinar-me-ia de morrer na minha cama, e não á maneira dos grandes no meio das danças e dos Cauins, afim de vingar-me antes de morrer, dos que iriam comer-me.

Quando penso, que sou filho de um dos grandes do meo paiz, que meo pae é homem moderado, que todos o cercavam para escutal-o quando elle ia á casa grande,[NCH 34] vendo-me agora escravo, sem pintura no corpo, sem cocar, sem enfeites nos braços, e nem nos pulsos, como acontece aos filhos dos grandes das nossas terras, antes queria ser morto especialmente quando me lembro, que fui agarrado ainda menino, com minha mãe, lá na minha terra, e trazido para Comã, onde vi matar e comer minha mãe, com quem desejei morrer, porque ella me amava muito, e por isso não posso senão lamentar minha vida.

Proferindo estas palavras, chorou muito, a ponto de pungir-me o coração, visto saber por experiencia quanto são amorosos estes selvagens, para com seos paes, e estes para com elles.

Accrescentou, que depois de ter sido sua mãe morta e comida, seo senhor e sua senhora o adoptaram por filho, e elle os tratava por pae e mãe: quando fallava d’elles era com affeição inexplicavel, embora tivessem comido sua propria mãe, e ja fosse resolvido o comel-o tambem pouco tempo antes de chegarmos á Ilha.

Seo senhor e senhora tomavam o trabalho de vir vel-o em nossa casa, embora fosse necessario vencer a distancia de 50 legoas, desde sua aldeia até aqui.