Pensar é preciso/III/Moisés, libertador e legislador

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Moisés foi o chefe carismático, libertador e legislador do povo de Israel, que lutou para que os antigos hebreus tivessem uma pátria, um conjunto de leis e uma religião monoteísta. Sua personalidade histórica foi envolvida, ao longo dos tempos, por inúmeras lendas sobre seu nascimento, a saída do Egito em busca da Terra Prometida, a travessia miraculosa do Mar Vermelho, o recebimento das Tábuas da Lei por Deus no monte do Sinai. O núcleo das notícias sobre a figura de Moisés está no Êxodo (“saída”, “passagem”), mas outros Livros Sagrados também falam dele, especialmente o Deuteronômio (“A Segunda Lei”), também denominado de 5º Livro de Moisés. Conforme a tradição judaica, ele seria o autor do Pentateuco, o conjunto dos primeiros cinco livros do Velho Testamento. No cântico final do Deuteronômio encontra-se a descrição da morte de Moisés, após a investidura do seu sucessor Josué. Evidentemente, trata-se de uma ficção literária, pois Moisés não poderia falar de sua própria morte. A não ser que dêsse uma de Brás Cubas, o protagonista de Memórias Póstumas, o famoso romance de Machado de Assis.

O núcleo histórico que sustenta os vários episódios lendários sobre a vida e os feitos de Moisés é a sujeição dos hebreus ao poderio egípcio. A história registra a presença de judeus no Egito, durante a XV e a XVI dinastia (1730-1580), quando Iksos (chefes de populações asiáticas) conquistaram a parte baixa do rio Nilo. Lá se instalaram algumas tribos de Israel, nômades em sua maioria ou provenientes dos arredores do monte Sinai, península desértica e montanhosa nas proximidades do Mar Vermelho. Avançaram, assim, no território egípcio, naquela época região rica e progressista. Lá trabalharam e tiveram certa prosperidade. A Bíblia narra que José, filho do patriarca Jacó, chegou a ocupar funções importantes na corte do faraó. Mas, quando os príncipes de Tebas derrotaram os Iksos, fizeram uma limpeza étnica, expulsando todos os estrangeiros e inaugurando o Novo Império dos Faraós. Provavelmente, as lendas sobre a vida e os feitos de Moisés e o êxodo dos israelitas do Egito têm como pano histórico o reinado de Ramsés II (1298-1235). Moshé, em hebraico, significa “retirado”. A tradução do nome Moisés, portanto, é “aquele que foi salvo das águas”. Segundo o relato bíblico, o Faraó deu a seguinte ordem a seu povo:


“Lançareis ao rio todos os indivíduos do sexo masculino que nasceram dos hebreus, e deixareis viver todas as raparigas”


Este trecho encontra-se no cap. 1° do Êxodo, onde o autor bíblico descreve a inveja dos egípcios perante a prosperidade dos hebreus no Egito e a conseqüente perseguição étnica, que culminou com a expulsão do povo judaico. Um recém-nascido, filho de um casal da tribo de Levi, o terceiro filho de Jacó e Lia, foi abandonado nas águas do rio Nilo. Uma filha do Faraó, enquanto tomava banho, ouviu o choro e avistou a criança. Apiedou-se, então, e o adotou como filho. A história de Moisés salvo das águas é pouco original, pois tem precedente (a lenda de Sargon, rei da Babilônia, 2300 a.C, metido num cesto de vime e abandonado nas águas do rio Eufrates) e subseqüente (o nascimento dos gêmeos Rômulo e Remo, os fundadores de Roma, no séc. VIII a.C., tirados do rio Tibre por uma loba e depois criados por pastores). Adulto, Moisés, ao defender um hebreu chicoteado por egípcios, comete assassinato e foge para a cidade de Madian, onde se casa com a filha de um sacerdote e tem um filho a quem dá o nome de Gersam. Enquanto apascentava o gado do sogro, teve a primeira visão sobrenatural, pela qual recebeu a missão divina:


“Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó...vai, envio-te ao Faraó, para que tire do Egito o meu povo, os filhos de Israel” (Ex., 3).


Moisés retorna à corte do Faraó e revela ser o enviado do deus de Israel para salvar seu povo. O Faraó recusa prestar homenagem a Jeová e a situação dos hebreus no Egito se agrava, passando a serem escravizados. Para obrigar os egípcios a libertar o povo hebreu, Deus envia dez pragas (as águas convertidas em sangue, as rãs, os mosquitos, as moscas venenosas, a peste dos animais, as úlceras, o granizo, os gafanhotos, as trevas, a matança dos primogênitos). A décima praga, além de ser a mais cruel, é a mais importante por instituir a Páscoa hebraica. Por ordem divina, Moisés convoca os anciãos do povo de Israel para imolarem carneiros, embeber ramos de hissope (planta medicinal) no sangue e aspergir as ombreiras das portas dos israelitas, com o fim de poupá-los do genocídio que iria acontecer:


“No meio da noite, o Senhor matou todos os primogênitos do Egito, desde o primogênito do Faraó, herdeiro do seu trono, até os primogênitos dos animais...Guardareis a festa dos ázimos (o pão sem fermento), porque, nesse dia, fiz sair os vossos exércitos do Egito. Guardareis esse dia de geração em geração como uma instituição perpétua” (Ex.,11).


O Faraó, primeiro deixou partir, depois perseguiu os hebreus até o Mar Vermelho, onde se deu o milagre da secagem das águas até a passagem dos judeus. Logo em seguida, as águas se reuniram, afogando o exército egípcio. Enfim, os filhos de Israel chegam ao deserto do Sinai, onde se dá a revelação mais importante do Velho Testamento: o Pacto de Aliança entre Jeová e o povo de Moisés, com a promulgação das Tábuas da Lei, contendo os Dez Mandamentos. Tendo como texto de base o cap. 20 do Êxodo (Bíblia Sagrada, ed. Missionários Capuchinhos, Lisboa, 1974), apresento uma síntese do Decálogo atribuído a Moisés, tecendo algumas considerações a respeito.