Pensar é preciso/IV/Primeira fase da Idade Média: a era das trevas

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O Cristianismo começa seu apogeu quando o Império Romano entra em declínio. O ano de 325 pode ser considerado um divisor de águas: o Imperador Constantino I, o Grande, que disputara com mais seis pretendentes o poder absoluto sobre Roma, entre 306 e 337, obteve a vitória final e convocou o Concílio de Nicéia, colocando o Cristianismo a serviço da política. Há tempo ele vinha protegendo os cristãos, influenciado pela mãe, a concubina Helena, que se converteu e acabou sendo canonizada, tornando-se a atual Santa Helena.

Narra a tradição que, em 312, na véspera da batalha contra o imperador insurreto Maxêncio, na ponte Mílvia sobre o rio Tibre, em Roma, Constantino teve uma visão (semelhante à de Paulo de Tarso!), aparecendo-lhe uma cruz luminosa onde se lia In hoc signo vincet (“com este símbolo, tu vencerás”). E ele venceu (aconteceu mais um milagre!) e se converteu ao Cristianismo. No ano seguinte proclamou o Édito de Milão, garantindo a liberdade de culto e ordenando a restituição aos cristãos de todos os bens confiscados. Logo em seguida, deixou a cidade de Roma aos cuidados do Papa Silvestre I, mudando a capital do Império Romano para Bizâncio, que foi rebatizada com o nome de Constantinopla, no ano de 330. O Papa mandou forjar um documento, chamado “A doação de Constantino”, segundo o qual o Imperador, em seu leito de morte, teria legado ao Sumo Pontífice o poder sobre Roma e todos os territórios do mundo cristão.

Então, como veremos em seguida, os cristãos, de perseguidos, passaram a ser perseguidores. Acabara o tempo dos primórdios do cristianismo, quando a nascente igreja vivia aterrorizada pelas comunidades hostis do judaísmo na Palestina e pelos habitantes de Roma que não perdoavam a tentativa cristã de derrubar as estátuas de suas divindades tradicionais, em nome do culto a um único deus, o Cresthos dos hebreus, que morreu numa cruz. Os latinos sempre foram tolerantes com relação às religiões. Em Roma edificaram um templo, o Panteon (que ainda hoje pode ser visitado), para abrigar todos os deuses, nacionais e importados. Os romanos teríam colocado, de bom grado, o Cristo dos judeus junto ao Zeus grego e a Osíris do Egito. Foram os cristãos a não querer, pois consideravam todos os deuses pagãos como falsos e mentirosos, sendo verdadeiro apenas o deus deles.

Da Palestina, os cristãos foram a Roma para impor sua nova religião, desprezando os cultos tradicionais dos que lhes davam abrigo. Os romanos reagiram à invasão dos cristãos jogando-os aos leões, obrigando-os a lutar nas arenas contra gladiadores, perseguindo-os nas catacumbas. Tais histórias fantasiosas fizeram a fortuna dos produtores cinematográficos de Hollyood. Mas ninguém pode negar que a fé dos primitivos cristãos era tão grande que eles preferiam o sofrimento e até o martírio, esperançosos na ressureição dos corpos e na conquista do paraíso.

Toda essa crença, porém, não impedia a presença do medo em seus espíritos. E o medo gera o ódio! A angústia e a revolta estão expressas plasticamente no Novo Testamento, especialmente no Apocalipse, que pode ser considerado o contraponto ao Sermão da Montanha, que é um hino à paz entre os homens. O livro atribuído a João de Patmos apresenta o dualismo cósmico da luta entre as forças do bem contra as do mal. Satã e suas cortes atacam Miguel e seus anjos no céu, enquanto os perversos agridem os homens justos na terra.

Mas, a partir da atuação do imperador Constantino, a situação se reverte. Os que eram vítimas se tornaram agressores. A Igreja de Roma, junto com o poder espiritual, assumiu também o poder temporal, dando início a uma teocracia que dominou a Europa por longos e tenebrosos séculos, estendendo sua influência também nas Colônias do Novo Mundo. E a vingança não era apenas contra os pagãos politeístas. Os bispos, após o Concílio de Nicéia, mandaram destruir os evangelhos apócrifos e todos os outros escritos que não se encaixavam no cânone por eles estabelecido, além de condenar e punir qualquer forma de heresia.

Quando Teodósio II (401-50) promulgou o Cristianismo como a fé oficial do Império, os judeus foram proibidos de ocupar cargos civis ou militares e sua língua hebraica não pôde mais ser ensinada, nem sequer nas sinagogas. O terror imposto pela religião à ciência e ao conhecimento ao longo dos primeiros séculos do Cristianismo encontra-se descrito nas obras de Apologistas, Doutores e Padres da Igreja. Para Santo Agostinho os deuses pagãos eram demônios que vagavam numa Terra achatada, que tinha apenas seis mil anos de idade. Tertuliano afirmava que quanto maior o absurdo, mais forte era sua fé, prometendo aos devotos o gozo do espetáculo das torturas eternas a que Deus condenava os que morressem no pecado. Não diferentemente, os pregadores de várias igrejas ou seitas da atualidade continuam aterrorizando os incautos crentes com as ameaças de Satanás, extorquindo seu dinheirinho, em troca da benção divina!

Talvez o exemplo mais cabal do atraso civilizacional provocado pela religião cristã foi a proibição dos jogos olímpicos. No fim do séc. IV d.C., o imperador romano Teodósio I (347-395), alcunhado o “Grande” por ter assegurado o triunfo definitivo do cristianismo, ordenou a destruição do templo de Zeus, na cidade grega de Olímpia, para acabar com o politeísmo pagão. Determinou, também, o fim das Olimpíadas, que vinham sendo disputadas desde o séc. VII a.C., por considerá-las nocivas à formação religiosa dos jovens. O lema clássico mens sana in corpore sano (cabeça boa num corpo sarado), foi substituído pelo princípio da moralidade cristã: mens sana in corpore castigato (alma pura num corpo flagelado).

Precisaram passar aproximadamente 15 séculos para que a humanidade retomasse o espírito olímpico da Grécia antiga. O magnata francês Pierre de Coubertain lutou para criar o Comitê Olímpico Internacional, que organizou a primeira Olimpíada da era moderna, em Atenas, em 1896. Seu símbolo é o entrelaçamento dos cinco Continentes, seu lema é citius (mais rápido), altius (mais alto) e fortius (mais intenso). A Carta Olímpica proíbe qualquer espécie de propaganda política, religiosa ou racial, afirmando a isenção ideológica do torneio e exortando à paz e à concórdia entre os povos.

O domínio da Igreja Católica se intensificou com a queda do Império Romano do Ocidente (476), causada pelas invasões barbáricas. A Idade Antiga, caracterizada pela civilização greco-romana, chega ao fim, dando origem à chamada Idade Média. O termo é bem explicativo, pois medieval significa “mediano”, entre um antes e um depois, isto é, entre a cultura clássica e a moderna, que começaria a partir do século XI. Quer dizer que do séc. V ao XI não houve civilização alguma, sendo a cultura medieval caracterizada simplesmente pela ausência de cultura.

Efetivamente, notamos na Europa um longo tempo de vazio civilizacional, passado para a história como a “época das trevas”. Parece exagero de historiadores, mas é a pura verdade. Uma pergunta intrigante: algum leitor deste meu livrinho poderia me citar o nome de apenas uma pessoa ilustre no campo da filosofia, das ciências, das artes, dos esportes, que viveu na Itália, na França ou em qualquer outro país da Europa, em algum momento, ao longo de aproximadamente 600 anos, do séc. V ao XI? A resposta só pode ser negativa e se configura como uma constatação espantosa. A única personalidade importante que passou para a história, durante este longo período de tempo, foi o Rei da França, Carlos Magno, coroado pelo Papa como Imperador do Ocidente no ano 800, como recompensa de suas lutas contra os mouros e em defesa da religião cristã. E, sintomaticamente, ele era analfabeto, assinando documentos com o dedão.

Como explicar tamanho atraso na Europa toda e durante vários séculos, se a pequena Grécia, em poucas décadas, apenas na época de Péricles, no longínquo séc. V a.C., criara obras maravilhosas de literatura, teatro, artes plásticas, além de inventar a filosofia, a democracia, as olimpíadas? Será que a crença na fantasmagórica diversidade de seus mitos pagãos estimulava a mente dos gregos para a criatividade, enquanto o monoteísmo cristão levara a inteligência humana ao reducionismo?

Sem dúvida, houve um retrocesso da Humanidade na época medieval, causado pela centralização no problema da salvação da alma que, após a morte corporal, deveria prestar contas a um deus no além. A preocupação do homem é limitada ao aspecto religioso. Os dois principais ciclos de cultura, o bretão e o carolíngio, estão intimamente ligados à difusão e à defesa da doutrina cristã. O primeiro trata do rei Artur, o herói lendário da Grã-Bretanha, com seus Cavaleiros da Távola Redonda (Galaaz, Percival e Boors), em busca do Santo Graal, o vaso onde teria sido recolhido o sangue de Cristo na Cruz. No final do séc. V, o rei Artur dominou os anglos do norte e os saxões do oeste, introduzindo o Cristianismo na Inglaterra. O segundo ciclo, o carolíngio, está centrado sobre a figura de Carlos Magno e os Paladinos da França, cujo herói principal é Roland (Orlando, em italiano), em luta contra os muçulmanos que, a partir do final do século VII, começaram a invadir o Sul da Europa.

Mas é preciso relevar que estas e outras narrativas épicas, embora situadas na primeira fase da Idade Média, somente foram escritas em versos e em prosa depois do séc. XI, quando os países europeus tiveram suas línguas nacionais. Anteriormente, havia apenas uma tradição oral, passada de geração para geração. Repete-se, então, com A Demanda do Santo Graal e La Chanson de Roland, o mesmo fenômeno que aconteceu com a Ilíada e a Odisséia da Grécia, a Torá hebraica, os cantos épicos da Espanha (El cantar de mio Cid) e da Alemanha (Os Nibelungos): o fato histórico inicial é transformado e idealizado pela tradição oral ao longo de muitos anos, até que uma nação consiga um nível de linguagem adequado e gente intelectualizada capaz de consagrar os feitos de seus heróis em obras de arte literária.

Para explicar a paralisia cultural da primeira fase da Idade Média (do séc. VI ao XI) é preciso considerar vários fatores de ordem histórica, política, social, lingüística e religiosa. Faltam-me tempo, espaço e competência para aprofundar o assunto. Tocarei apenas em alguns aspectos que reputo importantes. Uma das culpas imperdoáveis da Igreja de Roma foi ter fechado as escolas que os romanos iam abrindo na medida em que ocupavam os territórios da Gália e de outras regiões da Europa. Lá eles ensinavam a língua latina e as demais disciplinas escolares, inclusive as obras dos escritores gregos e romanos, que já eram considerados “clássicos”, pois eram lidos nas classes.

O fechamento das escolas públicas se explica porque bispos e padres consideravam a leitura de textos de Homero, Virgílio, Horácio ou Ovídio, como nocivos para a educação das crianças, pois falavam de divindades pagãs ou de amores profanos. Observamos, de relance, que eliminar a memória do passado é condição essencial para a afirmação de qualquer modalidade de totalitarismo. O que a Igreja da Idade Média fez com relação à cultura greco-romana é semelhante ao que o marxismo e o nazismo tentaram fazer na Europa moderna, apagando a memória do passado através de lavagem cerebral e de processos de depuração de idéias. A tentativa da destruição da tradição judaica por Hitler e da mundividência pagã e cristã por Lênin e Stalin era considerada necessária para a imposição de ideologias racistas ou populistas, outras formas funestas de absolutismo, que igualmente esmagam a liberdade de pensar, de sentir, de agir.

Em decorrência do fechamento das escolas romanas, aconteceu algo de estranho na Europa medieval: os povos falavam uma língua que não era escrita e escreviam (os pouquíssimos letrados) numa língua que não era falada. A língua oficial era o latim, que só era estudada por clérigos e alguns nobres, enquanto a massa popular falava os dialetos nativos das várias regiões. Mais de 90% da população era analfabeta, pois recebiam o ensino apenas oralmente, nas igrejas, durante os cultos religiosos. E sem uma língua escrita e falada pela maioria dos cidadãos não há possibilidade de civilização. A própria palavra literatura vem de littera, que significa “letra”, a palavra escrita. Tal situação de atraso cultural se alastrou até à virada do milênio, quando vários dialetos falados por povos europeus se tornaram línguas escritas. Os primeiros documentos dos idiomas modernos, as chamadas línguas românicas ou neolatinas (italiano, francês, espanhol, português, romeno) remontam ao início do séc. XII, quando acaba a primeira fase da Idade Média e começa a pré-renascença.

Outro fator determinante do atraso medieval foi o sistema político-social, fundamentado no Feudalismo. As invasões dos bárbaros, uma das causas da desagregação do Império Romano, provocaram uma profunda mudança na economia, que de citadina se tornou campesina. Para fugir da violência dos ataques dos invasores, gente de posse abandonava as grandes cidades e se refugiava nas regiões interioranas, onde construía castelos, circundados por fossos e ameias. A descentralização e a ruralização causaram o emprego de mão-de-obra servil, que se aproximava muito da escravatura. Os camponeses, que trabalhavam nas terras do dono do feudo, vivam nos burgos (daí o nome de “burguês”), vilarejos construídos nas proximidades do castelo fortificado, produzindo apenas o necessário à subsistência.

A estrutura social era semelhante a uma pirâmide: no topo estava o “Suserano” (rei ou príncipe), que concedia um “feudo” ou benefício (título de propriedade de terras) a um nobre (conde, duque etc.), mediante a condição de vassalagem, que implicava fidelidade política e ajuda econômica. O dono do castelo, por sua vez, podia ter outros vassalos (“valvassori”, em italiano) e a estes era dado o direito de ter vassalos inferiores (“valvassini”). Tal escala de vassalagem ligava estritamente a autoridade com a propriedade rural, estabelecendo entre suseranos e vassalos uma forte relação de dependência.

O sistema feudal, que dominou na época medieval, parece coisa do passado. Ledo engano! Mutatis mudandis (trocando apenas o contexto), os antigos feudatários podem ser visto como os ancestrais dos atuais políticos de muitos países que se acham democráticos. O chefe do partido (ou a cúpula partidária) é o suserano que vai indicar os candidatos aos cargos eletivos e executivos (os feudos) dos vários escalões do Governo federal, estadual e municipal. Uma vez empossados, os feudatários têm obrigações com o partido e seus eleitores, pagando dízimos e distribuindo cargos entre parentes e compadres, visando abastecer seus currais eleitorais para se reeleger sucessivamente.

Cria-se, assim, o círculo vicioso: quem tiver mais benesses para distribuir, terá mais vassalos, e quem tem mais vassalos goza de chance maior para se reeleger e permanecer no poder. Evidentemente, presidentes, governadores, prefeitos, deputados federais e estaduais, assim como os senadores, estão mais inclinados a retribuir os favores recebidos do que atender às necessidades reais e gerais da Nação. A miséria e a ignorância do povo, que troca seu voto por um benefício qualquer, estão na base da construção de redutos eleitorais que há séculos governam países subdesenvolvidos, sempre adiando as indispensáveis reformas estruturais no tocante a educação, a saúde, o transporte coletivo.

O sistema feudal provocou outra causa do atraso medieval: o isolamento em que a Europa viveu durante tantos séculos. A vida social se passava em castelos muito distantes entre si. O meio de comunicação mais usado era o cavalo, cabendo aos “cavaleiros andantes” a incumbência de transmitir notícias e mensagens de um lugar para outro. A isso se acrescente o bloqueio do mar mediterrâneo pela irrupção do Islamismo, de que vou falar no próximo capítulo. Para termos uma idéia dessa precariedade basta comparar o sistema de comunicação entre tribos indígenas da atualidade e povos que se servem da Internet! O avanço tecnológico que nos permite saber o que acontece no resto mundo de uma forma rápida e poder intervir fazendo críticas e dando sugestões via correio eletrônico contribui, sem dúvida, para o melhoramento da espécie humana.

Mas, segundo meu entendimento, o fator que mais concorreu para o atraso medieval foi a cosmovisão do Cristianismo. De um lado, a Igreja de Roma construiu um sistema feudal paralelo ao da sociedade civil pela semelhança de sua hierarquia (papa, bispos, vigários, fiéis que pagam dízimos em troca de indulgências) e por possuir grandes propriedades (a imposição do celibato aos bispos-feudatários visava não criar vínculos de hereditariedade). De outro lado, projetando a felicidade num outro mundo, desestimulou qualquer forma de progresso. Para que estudar e trabalhar se a vida nesta terra é apenas uma passagem, pois nosso destino é a eternidade? Para que cultivar o físico e o intelecto, se nascemos do pó e ao pó voltaremos?

A única coisa a fazer é conquistar méritos para salvar nossa alma imortal. E lá vão rezas, penitências, jejuns, sacrifícios, abstenções de comidas, bebidas e sexo, enfim de qualquer prazer da carne. Dá-se preferência à vida contemplativa, monástica, em conventos e mosteiros. Se a finalidade da vida é a espera da morte, por que cultivar ciências e artes? Basta-nos seguir os ditames da Sagrada Escritura. Tal postura perante a vida não deixa de ser coerente com os princípios do Cristianismo, assim como postos em prática na primeira fase da Idade Média.