Pensar é preciso/X/Traços biográficos, formação intelectual, Capitalismo e Comunismo
X – Karl Marx: a utopia comunista
“Toda revolução começa com os idealistas e acaba com os tiranos”
Já não lembro mais quem disse a frase acima, que reflete muito bem a trajetória da revolução comunista. Ela iniciou com jovens idealistas franceses e alemães, inconformados com os efeitos da revolução industrial, que tirara os homens do campo para serem explorados pelos donos de fábricas. Decênios de luta de trabalhadores, ligados à Internacional Socialista, contra os detentores do poder político e econômico foram coroados com o triunfo da revolução bolchevique que, a partir de 1917, instalou o regime comunista na antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). O movimento revolucionário terminou quando o povo russo não agüentou mais o despotismo sanguinário de dirigentes comunistas, pedindo uma nova ordem social. O símbolo do fim do Comunismo foi a derrubada do muro de Berlim (1989), que separava a parte rica da Alemanha democrática do lado miserável da Berlim oriental. E isso aconteceu porque aos jovens idealistas Marx e Engels sucederam os tiranos Lênin e Stalin.
Traços biográficos
Karl Marx (1818-1883) é considerado o pai do Comunismo. Filósofo e sociólogo alemão, ele revolucionou o mundo político e econômico da Europa. Filho de um advogado judeu convertido ao protestantismo, estudou Direito nas Universidades de Bonn e Berlim, dedicando-se principalmente ao estudo da Filosofia e da História Universal. Seu primeiro emprego foi como jornalista da Gazeta Renana, ofício que lhe deu a oportunidade de conhecer diretamente os problemas sociais da Alemanha e da França, onde passou a residir, nutrindo-se das teorias de Proudhon e de outros pregadores de idéias socialistas. Em Paris, e logo depois em Bruxelas, onde fundou a Sociedade dos Operários Alemães, desenvolveu uma intensa atividade política, estabelecendo contatos com trabalhadores militantes nas fileiras dos revoltosos contra a miséria em que vivia a classe popular nos países do centro da Europa, ainda dominada pelo Estado feudal prussiano.
Decisiva foi a amizade de Marx com Friedrich Engels, filho do dono de uma fábrica de fiação em Manchester. Estudante idealista, na linha dos hegelianos de esquerda, que pretendiam destruir a Religião tradicional e o Estado existente, realizou uma pesquisa na indústria do pai sobre os efeitos do Capitalismo no Proletariado. A tese foi publicada com o título “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. Marx conheceu Engels em Paris, em 1844, começando uma amizade que durou a vida toda, regada pela comunhão dos mesmos ideais. Juntos, redigiram o Manifesto do Partido Comunista, no fatídico ano de 1848, quando estouraram várias revoluções na Europa. No ano seguinte, expulso sucessivamente da Bélgica, da Alemanha e da França, Marx se refugia na Inglaterra, onde é acolhido pelo amigo Engels, que o ajuda na elaboração de sua obra-prima O Capital (Das Kapital), cujo Livro I foi publicado em 1867. Os dois outros volumes do Capital foram editados por Engels, após a morte do amigo.
Formação intelectual
Marx, como Freud (e a maioria dos formadores de consciência), tivera uma sólida educação humanista. Apresentou, na Universidade de Iena, uma tese sobre “As diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro”. O estudo dos antigos atomistas lhe abriu o caminho para a concepção materialista do mundo, afastando-o das crendices religiosas. Mas foi um aluno de Hegel, Ludwig Feuerbach, seu contemporâneo e conterrâneo, que o introduziu para o materialismo dialético e histórico. Na sua obra mestra, A essência do cristianismo (1841), o filósofo alemão dá a entender que a idéia de Deus está implícita no desenvolvimento da própria humanidade, não havendo nada que transcenda a realidade. Também o que chamamos de alma, espírito ou inteligência, é composto de átomos materiais. Feuerbach chega a afirmar que “o homem é o que come”, pois é o alimento a nutrir os neurônios do nosso cérebro.
Karl Marx reconheceu o mérito do filósofo idealista Hegel ao fundamentar a teoria do conhecimento sobre o método dialético. O termo e o sentido de dialética (“a palavra em movimento”, o diálogo) são bem antigos. Heráclito achava que o mundo da realidade não tem estabilidade alguma, estando em contínuo movimento, sujeito a mudança e transformações. Ele exemplifica a idéia do panta rei (“tudo corre”) pela bela imagem do homem que não consegue banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois, na segunda imersão, nem as águas nem o homem serão os mesmos.
Diferentemente do modo “causal”, pelo qual se estabelece uma relação de causa e efeito entre dois fatos (as nuvens carregadas provocam a chuva), o modo “dialético” salienta os elementos de conflito entre duas ações, cujo choque provoca uma nova situação: a briga entre casais pode levar à separação; consequentemente, a luta contra a solidão existencial pode induzir o homem e a mulher a uma nova união, e assim sucessivamente. Os elementos do esquema básico do método dialético são “tese”, “antítese” e “síntese”. A tese propõe uma idéia ou situação, enquanto a antítese contesta o que estava anteriormente colocado. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que reúne os elementos contrários do embate e se anuncia como tese de um novo processo dialético.
Karl Marx passa a criticar a dialética de Hegel por ser idealista e abordar apenas o movimento do espírito, enquanto a dialética que ele propõe é um método de análise da realidade, que vai do concreto ao abstrato. Marx afirma que Hegel tinha descoberto o caminho certo para captar a verdade, só que a fazia andar de cabeça para baixo, visto que a verdade não está no mundo das idéias, mas na realidade cotidiana, caminhando de fora para dentro e não no sentido contrário. E isso porque Hegel, vivendo enfiado em salas de aula ou em bibliotecas, não tinha contato com os problemas cotidianos. Diferentemete, o discurso de Marx é materialista e histórico: o método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente, ao mesmo tempo em que se questiona o momento atual com olhos postos no futuro.
Pensamento econômico e político: Capitalismo e Comunismo
Pela teoria do materialismo histórico, a consciência dos homens é determinada pela realidade social (e não o contrário, conforme a dialética subjetivista e idealista de Hegel). Quer dizer, é o conjunto dos meios de produção que constitui a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura política e jurídica, que forma uma determinada consciência social e moral. No sistema capitalista, o empregado vende ao proprietário dos meios de produção sua força de trabalho, que não deixa de ser ela também uma mercadoria, submetida à lei da concorrência (oferta e procura: quando há desemprego, o salário é mais baixo). Marx chama de “mais-valia” à diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador. A taxa da mais-valia exprime o grau de exploração do assalariado. Seguindo a lei natural do egoísmo individual ou de grupos econômicos, a tendência do empregador é aumentar a mais-valia, explorando o trabalho humano. Conseqüência disso é o acúmulo do capital de um lado e a miséria do trabalhador na outra ponta. A crítica mais profunda que Marx tece contra o sistema capitalista é a alienação dos trabalhadores. Estes não conseguem adquirir os bens que eles próprios produzem, sentindo-se estranhos a suas criações. A contradição dialética entre as condições de produção e o acesso desigual aos bens produzidos, entre trabalho e distribuição de riqueza, só pode ser resolvida pela luta de classes, que é vista como a força motriz da história. Isto ocorre quando massas empobrecidas do proletariado entram em confronte com os poucos capitalistas que, possuindo os meios de produção, exploram a mão de obra, não pagando aos operários o justo preço do seu trabalho. Os donos das empresas embolsam a mais-valia como lucro, pagando aos trabalhadores o mínimo necessário para sua subsistência. A não divisão dos lucros leva a dois malefícios:
- 1) o pagamento do trabalho apenas para o empregado não morrer de fome segue o modelo social das épocas de escravidão, quando era praticada a caridade em lugar da justiça;
- 2) a concentração do capital nas mãos de poucas pessoas gera o imperialismo nacional e internacional: as grandes empresas devoram as pequenas, que não suportam o peso da concorrência desleal, e se expandem além das fronteiras, subjugando as economias de povos mais pobres e tecnologicamente atrasados.
Daí a luta entre classes sociais desaguar na luta entre nações, provocando conflitos e guerras. É a lei da selva: o mais forte come o mais fraco! O Capitalismo torna-se um Imperialismo disfarçado de democracia, pois os poderosos impõem uma ideologia pela qual seus interesses são apresentados como se fossem os interesses da sociedade toda.
Infelizmente, a exploração do trabalho humano existiu antes da revolução industrial na Inglaterra e continua existindo ainda hoje, em vários lugares, inclusive sob regimes considerados democráticos. No Brasil, há uma longa história de opressão dos operários, que remonta à época colonial quando os donos de engenho se serviam da mão de obra escrava. Sem ir longe no tempo ou no espaço, no interior do Estado de São Paulo, o mais rico e progressista do nosso país, recentemente, após o boom do etanol, milhares de cortadores vivem no submundo da produção da cana, em condições precárias, sem ter os direitos trabalhistas garantidos. Os produtores se enriquecem egoisticamente, enquanto os trabalhadores rurais vivem na miséria mais esquálida, ainda sendo ameaçados com a perda do emprego pela mecanização da lavoura. Será que um dia a sociedade humana irá entender que o sistema de participação nos lucros, além de ser a forma mais justa de relacionamento entre patrão e operário, é também, em muitos casos, a mais eficiente? Urge chegar a uma síntese entre a tese capitalista e antítese marxista. Na época de Marx, o capitalismo era um sistema econômico selvagem, sem economia de mercado, valendo a lei do mais forte. Não havia nenhuma legislação trabalhista nem sindicatos que defendessem os direitos dos operários. Em escala internacional, ainda não existia a Organização Mundial do Comercio, nem leis antitruste. E o Estado era omisso na defesa dos trabalhadores.
No regime comunista, houve uma reviravolta: o Estado passou a se hipertrofiar, matando a economia de mercado e a livre concorrência. Os burocratas do partido se enriqueceram às custas da grande massa trabalhadora, substituindo os antigos capitalistas. É necessário, portanto, que as duas principais instituições da sociedade humana, o Estado e o Mercado, estejam continuamente interagindo. Para Marx, também a religião é uma forma de alienação, de que se serve a classe dominante para manter o povo subjugado. A prática de qualquer tipo de religiosidade é o sintoma de um sistema social enfermo, que precisa de remédios. A cura é colocada na crença da existência de outro mundo, sobrenatural, onde estão projetados os ideais de vida impossíveis de serem alcançados aqui na terra: a justiça, a bondade, o amor entre todos os homens, sem distinção de classes ou de cores. A religião, portanto, torna-se “o ópio do povo”, a droga indispensável para poder suportar todas as desgraças. O pior é que acaba com a esperança de um dia encontrar a salvação neste mundo.
Mas, recentemente, uma corrente esclarecida da Igreja Católica está tomando consciência da importância da religião lutar contra a iniquidade social. No final dos anos 60, o ex-frei brasileiro Leonardo Boff deu início ao movimento chamado Teologia da Libertação com propósitos retomados mais tarde pelo Fórum Social Mundial. A essência destes dois movimentos é a luta para uma maior justiça social. O papa João Paulo II, em ocasião da “Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano”, realizada em Puebla, cidade do México (1979), também ele, embora contrário à postura ideológica de Boff, confessava que “o capital tem uma hipoteca social”.
Sem condenar diretamente o sistema capitalista, o Santo Padre ensinava que toda a grande fortuna tem origem e sustentação no trabalho humano. É uma “hipoteca” porque o lucro do capitalista está relacionado diretamente com a produção dos bens proporcionado pelo labor dos operários. De outro lado, se o trabalhador não tiver um ganho justo, como poderá comprar os bens que ele produz? Para quem o patrão irá vender a mercadoria? Portanto, recompensar adequadamente quem trabalha, além de ser um ato de justiça, é questão de sobrevivência do próprio capitalismo.