Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Poema Negro

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Poema Negro

A Santos Netto

 

Para illudir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me illudo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares funebres, carrego
A indifferença estupida de um cego
E o ar indolente de um chinez idiota!

A passagem dos seculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavallo de electricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o echo,
Eu torço os braços numa angustia douda
E muita vez, á meia noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que ha de comer a minha carne toda!

É a Morte — esta carnivora assanhada —
Serpente má de lingua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sae para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria analyse das cousas,
Corro. Arranco os cadaveres das lousas
E as suas partes pôdres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquelle embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surprehendo-me, sosinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajos pretos e amarellos,
Levanta contra mim grandes cutellos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquillo vinha vindo
Eu fui cahindo como um so1 cahindo
De declinio em declinio; e de declinio
Em declinio, com a gula de uma fera,
Quiz ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilinio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam...
Eu desafio, desta cova escura,
No hysterismo damnado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam!

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove mezes!

Semeadora terrivel de defunctos,
Contra a aggressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros;
Acorda, e após gritar a ultima injuria,
Chocalha os dentes com medonha furia
Como si fosse o attrito de dous ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Déste-me fogo quando eu tinha sêde.
Deixa te estar, canalha, que eu me vingo!

Subito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-Feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre.
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as stalactites da caverna,
Cáe no silencio da Cidade Eterna
A agua da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Christo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não ha ninguem na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de S. Pedro, quieta,
As luzes funeraes arquejam fracas...
O vento entoa canticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.

A desaggregação de minha Ideia
Augmenta. Como as chagas da morphéa,
O medo, o desalento e o desconforto
Paralysam-me os circulos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molecula e no atomo... Resume
A espiritualidade da materia
E elle è que embala o corpo da miseria
E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pezadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabellos.
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconnexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O ceu dorme. A arvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensanguento na vigilia!
E observo, emquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulchral da austera sala
E a impassibilidade da mobilia.

Meu coração, como um crystal, se quebre;
O thermometro negue minha febre
Torne-se gelo o sangue que me abraza,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruinas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vasei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lagrimas immersos...
Rola-me na cabeça o cerebro ôco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.

 

Parahyba — 1906