Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/Ao ilm. sr. coronel Antonio Felisberto Nogueira

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AO ILLM. SR. CORONEL

ANTONIO FELISBERTO NOGUEIRA
ENDEREÇANDO-LHE ESTES CANTOS DA SOLIDÃO




  Não vão meus cantos sob os vastos cimbrios
Do orgulho e da ambição offerecer-lhe
Em vasos d’ouro o nectar da lisonja;
Filhos da solidão, n’ella se aprazem,
Nos livres ares folgão de expandir-se,
E reboar nos échos da montanha;

  Nem adejando em torno da belleza,
Namorados accentos suspirando,
Aos lábios d’ella mendigar sorrisos;
De Anacreonte as rosas não enfeitão

O meu pobre alaúde affeito ao pranto;
Oh! não...porque no vaso de meu peito
Sem seiva, a flôr suave dos amores
Inclinou murcha o mavioso calix.

  E nem vão elles nos jardins da gloria
Colher-me o sacro louro do poeta,
Aureola fatal, que tantas vezes
Sobre a fronte que a cinge o raio chama.

  Qual leve aroma que da flôr se exhala,
E por momentos embalsama os ares,
Depois se esvae, se perde, — assim meus cantos
Talvez acabaráõ; — e a lyra ingloria
Se quebrará na pedra do meu tumulo
Sem mandar ao porvir um écho ao menos.

  Ide pois, cantos meus, voai azinha;
Ide; vossa missão é pura e santa;
Desdobrai sem receio as azas candidas
Na esphera azul; — transponde rios, serras,
Profundos valles, plainos e florestas,
E onde virdes retiro ameno e lédo,
Como que d’este mundo separado
Por altos serros, que alcantis corôão,

Casto asylo soidoso, onde não chegão
O importuno alvoroço, os vãos rumores
Das procéllas do mundo; — aonde virdes
De hirsuto monte nas virentes faldas,
Formoso alvergue branquejar risonho
Por entre a escura rama dos pinheiros,
Como um floco de neve, que dos montes
Rodou sobre o verdor do valle ameno,
Ahi pousai; — n’esse escondido asylo,
Caro a meu coração, vive um amigo
No remanso dos ermos procurando
Sereno curso p’ra seus velhos dias,
E olvido para as mágoas do passado.
Na vasta sombra d’esse tronco annoso
Provado já em tormentosas lutas,
Um dia minha fragil juventude
Foi abrigar-se; — e placida guarida
Meus dias foragidos encontrárão.
Sorrindo da tormenta, eu contemplava
Em luta com os tufões ranger-lhe o tronco,
E no tope sublime a tempestade
Passar rugindo sem vergar-lhe o collo;
E abençoava o céo, que em meu deserto
Me mostrou sua sombra hospitaleira.

  Mas — lá mesmo, na paz do seu retiro
Soffre talvez: — em sua nobre fronte
Os dias têm passado tormentosos,
Deixando n’ella em veneraveis surcos
Impresso o sello austero do infortunio;
E em seu peito talvez fermenta ainda
O fel de mil lembranças dolorosas!
Elle soffre, que é essa a sina eterna
De uma alma pura e grande: é assim que as nuvens
Procurão sempre o pincaro mais alto
E em torno conglobadas o corôão
De sinistro bulcão, prenhe de raios.
Ide, minhas canções, voai aos ermos,
Filhas da solidão, voltai a ella!
Bafejai do deserto o altivo tronco,
E como um bando de fagueiras brizas,
Em torno lhe agitai as leves azas,
Perfumadas de amor e de harmonia;
Ouça-vos elle nas serenas sombras
A soluçar com a fonte gemedora,
Que desfia entre o musgo dos penedos,
Brincar nas folhas c’os travessos zephyros,
E nas humidas lapas suspirando;
Ouça-vos a rugir com a tempestade

E reboar nas broncas serranias,
Gemer no pinheiral, roncar no abysmo
Co’as despenhadas aguas ribombando;
Sobre seus lares adejai cantando,
Alegres como o trino da andorinha;
E do repouso nas caladas horas,
Do leito seu afugentai cuidados,
Negras visões, anciados pesadêlos;
O somno lhe embalai, e sobre a fronte
Fazei pousar-lhe um sonho de esperança,
Qual flôr mimosa a vicejar no pino
De erma rocha, surcada pelos raios.