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Poesias posthumas do Dr. Aureliano José Lessa/A’ tarde

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Á TARDE


I


Lá descanbou o sol. Vai descorando
Manso e manso o setim vivo-ceruleo
E as vermelhas folhagens que recamam
O concavo do céo. Transluz no occaso
Por debil prisma cambiante facho
De semi-mortaes côres, que se perdem
No azul ferrete do nocturno manto.
Nevadas franjas fluctuando em flócos
Erram nas abas do docel da tarde,
Como da seda azul, que a moça traja,
Candida renda guarnecendo as orlas.
Galerna a viração farfalha, e brinca
Na coma da palmeira; o mar soluça
Espojando na praia; e a selva freme
Exhalando ineffavel harmonia,
Que os genios do ermo timidos murmuram.

Queixosa a jurity na balsa arrula,
Com ella geme o sabiá saüdoso,
Assim modûla suspirosa flauta,
Assim chama a viüva pelo espôso
Qu’inda tão joven lhe caiu dos braços.

II


Mãi da melancolia, ó meiga tarde,
Que magico pintor bordou teu manto
Co’as duvidosas sombras do mysterio?…
— Talvez são ellas encantados manes
De nossos pais, que errando pelos ares
Vêm segredar co’a nossa consciencia
Dubios emblemas de celestes phrases…
— Talvez são ellas pallido reflexo
De um côro d’anjos que a milhões de léguas
Sôbre uma nuvem d’ouro descantando
Ante a face do sol longinquos passam…
Não sei! Ha dentro d’alma tantas cousas
Que jámais proferiram labios d’homens…
Entretanto me echoam pelo espirito
Ethereos sons de peregrina orchestra,
Um doce pêso o coração me opprime,
Meu pensamento em sonhos se evapora,
Té de mim proprio sinto um vago olvido,
Um sereno rumôr, que a alma dormenta.


III


Salve, filha dos raios e das trévas,
Melancolica irmã das noites pallidas!
Quem te não ama?… A natureza toda
Murmura ao teu passar mysticas vozes
Repassadas de unção: — todos os olhos
Passeiam tuas tépidas campinas
Bafejadas de nuvens — té parece
Que a terra suspendendo o gyro, escuta
O adeus que o sol te envia além dos montes.
— Limpa o suor o peregrino errante,
E arrimado ao bordão mudo contempla-te
Esquecido do pouso:—sôbre o cabo
Da rude enxada recostado scisma
Nos africanos céos o pobre escravo,
Exhausto de fadiga to abençôa
Do fundo d’alma em barbara linguagem.
Mensageira de amôr, tu annuncías
A hora propicia aos soffrêgos amantes
Da nocturna entrevista, e a donzella
Erma de amôr te acolhe pensativa,
Phantasiando quadros de ventura,
Que o vazio do coração lhe suppram.
— Talvez agora na floresta annosa
Proscripto errante o indio americano
Pára, eleva-te um cantico selvagem
Nunca ouvido dos troncos que o circumdam.

— Fadem os Deuses pouso ao peregrino,
Liberdade ao escravo, amôr á virgem,
E tardes, como esta, ao triste Bardo!

IV


As inflammadas nuvens já se abatem
Do incendio occidental.—Reina o silencio
Temeroso e fugaz:—a natureza
Entre o somno e a vigilia está suspensa.
Oh! quem não sente susurrar-lhe n’alma
Um desejo ineffavel como os sonhos,
Uma lembrança incerta e vaporosa?!…
Nesta hora amavel entre a dôr, e o riso,
Magicamente embala-se a existencia;
Em cada coração qu’inda palpita
Sonora cáe da lyra do Universo
Uma nota de amôr e de saüdade.
Extatico no cume da montanha
Feroz não ruge o mosqueado tigre,
E o balsamo de amôr, que a tarde mana,
No coração do barbaro se infiltra.
Tudo é viver, mas um viver tão languido,
Tão mysterioso, que parece um sonho:
Calma na natureza, amôr em tudo.

Quiçá longe de urdir sangrentas tramas
De inhospito rochedo em negra cova
Responde agora o anjo do infortunio,
Inimigo dos homens. Tarde ou nunca
De um dormir lethargico desperte!
Vela, genio do bem, vela em seu somno!