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Poesias posthumas do Dr. Aureliano José Lessa/A Creação

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A CREAÇÃO


Quando tudo era Deus, quando só Elle
Pejava o horror do espaço;
Deus disse:—é bom que surja o Universo,
Recuemos um passo.—

Depois co’a dextra contrahindo o vacuo
Informe, e tenebroso,
Deixou cair o Universo inteiro
No espaço luminoso:

O silencio expandiu-se; era um sussurro
De sublime harmonia;
Hymno da vida, porque o sol gyrava
O primitivo dia.

Um chuveiro de mundos despenhou-se
Pelos desertos ares,
Como a saraiva, ou como os grãos de arêa
Lá no fundo dos mares.


Rodava a terra verde, e a lua pallida,
Ia a noite após ellas,
Mas caiu sôbre as trévas, que fugiam,
Uma chuva de estrêllas.

Os cometas correram desgrenhados,
Quaes profugos do inferno,
Levando aos astros dos confins da esphera
Os decretos do Eterno.

Do seu leito de abysmos o oceano
Tenta em vão levantar-se;
Vem tombando, mugindo, e espumando
Co’as terras abraçar-se.

Abre o condôr as azas sôbre navens,
Leviathan os mares;
E os jubados lesões, bramindo atroam
Os echos dos palmares.

Vem descendo dos montes, debruçados
Como enormes serpentes
Pelas campinas té beber no oceano,
Os rios e as correntes.

Os passaros cantando, a luz da aurora
Flóreos botões desata;
A selva freme, a viração murmura,
Sussurrando a cascata.


Immovel nos umbraes da Eternidade,
Té li o tempo estava;
Mas após o primeiro movimento
Já veloz caminhava.

Então milhões de mundos, e mais mundos,
Céos, e céos ao redor,
Todos em brado universal cantaram
Hosana ao Creador.

No meio da harmonia do Universo
Deus despertou o homem,
Lançando sôbre a terra um véo de nuvens
Que ao seu olhar o somem.

Co’a dextra incerta tateando os ares
O homem despertava…
Ebrio de vida, os membros apalpando,
— Tu quem és? — perguntava.

Tentou fallar; do peito a voz lhe brota,
E recúa admirado;
As aves cantam, e o cantar das aves
Escuta extasiado.

Quiz caminhar, correu pela planicie,
E galgou as collinas:
Derrama em tôrno, ao longe, o olhar vago,
Vê montes e campinas.


Os echos escutou por muito tempo,
Encruzados os braços,
E de lá vem descendo pensativo
Com vagarosos passos.

Debalde as vistas erra pelos troncos
Da numerosa selva;
Em vão percorre as grutas, fatigado
Assenta-se na relva.

Pensa, medita, e erguendo-se mais forte
De novo a selva explora;
Volve, revolve tudo, e o vazio
Do coração deplora.

Subito estaca palpitante o peito,
E co’ o abraço aberto…
Estão seus olhos devorando a scena,
Que descortinam perto…

Na borda de uma fonte crystallina
A mulher se mirava;
Rubra de pêjo, as graças inda nuas
Co’as brancas mãos tapava.

Ria-se á sua imagem; para ella
Os braços estendia…
Mas vendo a sombra abrir-lhe um terno abraço
Recuava e sorria.


Elle exclama: eras tu! E ella fugia
Co’as faces em rubôr…
Não pôde proseguir, caiu, caïram,
E levantou-se Amôr!