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Poesias posthumas do Dr. Aureliano José Lessa/O Poeta agonisante

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O POETA AGONISANTE


Oui, je mourrai: dejà ma lyre en est en deuil;
Jeune, je m’éteindrai, laissant peu de mémoire,
Sans peur;…


Da minha vida os derradeiros élos
Um por um se desprendem denegridos
Sôbre a urna do tempo; está minh’alma
Como um rochedo colossal pesando
Dentro em minha cabeça oppressa e curva,
E o batel de meus dias, arrojado
Aos tufões da desgraça, irá sedento
Beijar as praias da celeste patria…
Oh! já o sôpro gélido da morte
Minh’alma impelle a regiões ignotas,
Emquanto o coração bate mais lento
E pelos membros o torpôr passeia…


Adeus, ó meus amigos, uma lágrima
Na dextra fria do espirante Bardo,
Que só roçou nas illusões da vida,
Nas mentirosas vestes que rebuçam
A estatua immovel, negra, do infortunio!
Sôbre os meus olhos erram mil phantasmas
Sem côr, sem fórma; e no confuso espirito
Pousam e fogem, trépidos cardumes
De sonoras idéas, como enxames
De abelhas sobre flôr languida e sêcca.
Adeus, inda uma vez! que já no occaso
Meu sol vacilla, e o véo da noite baixa
Sôbre o perdido viajôr da terra;
Convém deitar-me ao lado do caminho,
A’ sombra do cypreste, e sem alentos
Dormir no esquecimento o somno eterno…

Entre a risonha multidão dos vivos,
Estrangeiro sem nome hei caminhado,
Triste exhalando em suspirosos cantos
Uma por uma as dôres, que em meu peito
Renasciam crueis… Oh! a desgraça
Seguiu-me a passo como a sombra ao corpo,
E no meu coração vibora interna
Matou-lhe as emoções, quebrou-lhe as fibras.


Desde o berço da infancia sobraçado
Co’a minha harpa infeliz, arrasto a vida
Pelo valle das dôres, onde inscripto
Encontrei meu lugar por entre tumulos…
Vêde! meus fracos pés ensanguentaram
As negras pedras da espinhosa estrada;
E nas azas do Zephyro partidas
Nunca mais soarão minhas endêchas!
Hoje na lage dos sepulchros venho
Quebrar esta chrysalida de argilla,
Que á hospede celeste os vôos tolhe,
E como ao lume a improvida pyrausta
Bater as azas para o sol da vida.

Foi triste o fado! meu Por entre os raros
E fugitivos sonhos que adejaram
Ao turvo céo de minha juventude,
Sempre, sempre surgiu a escura imagem
D’alguma dôr atroz, e á seu aspecto
Meus bellos sonhos timidos fugiam,
Bem como do rosal fogem as pombas
Ao chegar do milafre. Oh! lastimai-me!
Na sequiosa taça de meus dias
Foram caindo as horas inflammadas
Como fogo do céo na sarça adusta.


Cantei para olvidar o interno incendio,
E meus queixumes para Deus subiram,
Como o insenço do fervido thuribulo.
Essa chamma do céo, que abrasa o vate,
Crestou-me inteira a flôr da juventude…
Um pensamento só resta entre as cinzas,
Como immortal pyramide, que avulta
Sôbre um deserto… é Deus, que está commigo,
E’ Deus que pôz a mão no meu espirito
Para acalmar-lhe os ultimos anceios…

Dai-me a minh’harpa, eu quero, como o cysne,
N’um canto extremo evaporar a vida.