Psicologia do Boato

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O boato é um fenômeno social que bem merece uma preleção psicológica, como um capítulo, que de fato o é, da psicopatologia das multidões.

Nas multidões, ou nas turbas, os elementos estão reunidos em massas, num momento dado; os fenômenos sociais aí se realizam por explosão, por contágio súbito que tem como ponto de partida o estado afetivo exagerado de um ou de alguns elementos influentes - os chefes de revolta, de arruaças etc.

É da natureza humana o não agir sem um estímulo exterior; nossa vida mental não passa de sugestão de célula a célula e nossa vida social uma contínua sugestão de pessoa a pessoa. Isso se conclui da opinião dos psicólogos que têm tratado desse assunto. A sugestão é um fenômeno geral no meio social. A imitação, a repetição universal, de que G. Tarde se ocupa largamente no seu livro - Les Lois de l'Imitation - demonstrando sua universalidade, nada mais é do que a "sugestão" na significação mais ampla dessa palavra. O hipnotismo faz o papel de microscópio, mostrando-nos a sugestão muito aumentada. S. Sighele, no seu livro sobre a "turba criminosa", esboçando em traços gerais a psicologia das turbas, aceita as idéias de Tarde e mostra sua coincidência com as de Sergi (Psicose Epidêmica).

Com o boato as coisas se passam de modo um pouco diverso; o fenômeno se realiza lentamente, porque os indivíduos estão esparsos; mas o fenômeno é da mesma natureza essencial dos que se dão nas turbas.

Que é o boato? É quase sempre uma criação fantasiosa de um indivíduo mau, de caráter abjeto, fantasia essa que se espalha em horas, ou em dias, numa coletividade humana, num povoado, numa cidade, num Estado. O boato nasce como realização ilusória de um desejo perverso, originário de uma paixão inconfessável - raiva, vingança, interesse torpe, seja este pecuniário, político ou sexual.

O criador de um boato é sempre um imbecil (moral). A vítima é, em regra geral, uma pessoa que tem algum valor social; é esse o seu único consolo...

O boateiro escolhe um momento oportuno para lançar a sua mentira, a fantasia perversa. Esse momento é de alta importância, porque nele se acha a circunstância que dá aparência de verdade ao fato que se pretende propalar. Essa circunstância é mui variável de um caso a outro. Não é possível, por exemplo, divulgar a notícia de que um certo financeiro importante está louco (para dar-lhe, suponhamos, um golpe de momento) se estiver ele presente e visível a todo o mundo; é preciso que esteja ausente, fortuitamente. É a circunstância oportuna.

Não basta, porém, como explicação para o boato, essa circunstância e a possibilidade ou verossimilhança do fato a divulgar. É necessário o meio social apropriado para que o fenômeno se realize. A sociedade espelha o caráter de seus fatores antropológicos. A explicação é bem escabrosa e desoladora para o homem civilizado, mas é preciso repetir a verdade, ainda que muito nos custe.

"Dizer mal e gostar de ouvir falar mal de alguém é um velho cacoete da alma humana. Talvez seja a música mais harmônica que existe, porque convibra bem com qualquer espírito". A frase é de Austregésilo, no livro O Mal da Vida.

Há em toda a criatura humana um misto estranho de bondade e de maldade, de infâmia e de perversidade. As proporções dessa mistura é que variam ao infinito. Desde o tipo bom, completo, que sufoca perfeitamente o que há de mal dentro de si mesmo, porque a lucidez e a largueza de sua consciência lhe permitem reconhecer e dominar a própria tendência perversa, até o malvado arrematado, cuja consciência estreita e sensibilidade moral embotada lhe não permitem reconhecer o mal que vive dentro dele, há nessa vasta série, a infinidade de caracteres que vemos diariamente na sociedade.

Devo a fineza de um amigo o conhecimento de um trabalho de Conceptión Arenal (Delito Coletivo) em que se repete a noção acima exposta, apenas por outras palavras; "lo más grave y lo más triste es ver que cuanto mal son capaces los buenos, los que portales se tenian y lo habian sido hasta que la lucha vino a desnaturalizarlos, como se dice, o, para hablar con más propriedad, a revelar su naturaleza. Esta terrible revelación no es obra de ningún principio, de ninguna idea; es consecuencia del combate, que depierta malos instintos dormidos y pone en el caso y hasta en la necessidad a veces de satisfazerlos".

O trabalho secular da civilização tem sido exatamente o de reprimir ou recalcar o elemento mau e dar expansão e força ao que é bom. Aquele, porém, não se extingue; existe sempre, embora sufocado, como os Titãs da fábula que, vencidos pelos deuses e soterrados sob o peso das montanhas, se revelam de tempos em tempos pelas convulsões de seus membros, e sacodem as entranhas da Terra.

Canto e Melo, no seu recente romance - Relíquias da Memória - lá diz a mesma verdade, à página 67: "pela primeira vez na vida, pensei na crueldade dos homens. Só os conhecera até então através dos artifícios da civilização e do convencionalismo da sociedade. Ao vê-los agora, no pleno viço das suas inclinações primitivas e bárbaras, convenci-me de que o homem é mais feroz do que as feras e, se não exerce a todo o momento contra os outros homens a sua crueldade, é porque o medo da represália lhe arrefece dentro do coração os nefandos impulsos da ferocidade inata".

A concepção freudiana, seguindo as pegadas do Prof. Bergson, admite na alma humana o inconsciente dinâmico como sede de todas as tendências e instintos maus recalcados pela civilização no correr dos séculos.

Nada, entretanto, é novo neste mundo. Os doutores da Igreja, finos observadores e psicólogos, conheciam muito bem esses assuntos e deles trataram nos seus escritos sobre teologia, embora disfarçados pelo simbolismo de sua linguagem.

Sabido isto, ainda que em súmula, temos aí o núcleo indispensável para a explicação do boato.

Toda a pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem sucedida em todos os seus esforços, tem na sociedade número incontável de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe são absolutamente estranhos, não se tratando já de oficiais no mesmo ofício, conhecidíssimos como inimigos natos.

"A felicidade de qualquer é desespero para muitos", diz muito bem Austregésilo no Mal da Vida.

Quem não tem desafetos, tem com certeza passaporte para o reino do céu.

O sucesso, por si próprio, cria má disposição de ânimo nos outros. E essa indisposição vive no inconsciente; não é raciocinada. No seu fundo se encontra a inveja, disfarçada sob múltiplos aspectos. Na espécie humana é a política o melhor campo de observação.

Entre os animais o fenômeno é grosseiro e por demais visível. Repare-se quando diversos cavalos comem numa só manjedoura, cada um com seu quinhão de alimento, como sai sempre um deles do seu lugar, para ir escoicear os outros, embora não lhe falte comida. É o mesmo fenômeno que se encontra no meio social, muito abrandado, está visto, pelo grau superior de desenvolvimento em que se acha o homem.

É inegável, pois, que no meio social, por toda a parte, existe sempre uma atmosfera de insidiosa e inconsciente hostilidade contra a pessoa que vence na vida. Haverá alguém tão ingênuo que a desconheça?

Nessa atmosfera é que se acha o elemento vital indispensável à germinação e rápida florescência do boato.

A escuridão do anonimato dá ao boateiro o ânimo e a proteção de que carece para agir, como a escuridão da noite protege certos insetos nojentos que propagam repugnantes infecções. É mesmo essa uma das feições que distinguem o boato de outros fenômenos sociais da mesma natureza, como o tumulto das ruas, por exemplo, que se realiza em pleno dia, por contágio quase explosivo.

No fundo, na essência, os fatos são idênticos. As coisas se tornam mais claras por meio de exemplos banais. Barnabá, da ópera Gioconda, provoca na praça um tumulto contra a cega, mãe de Gioconda, lançando sorrateiramente no meio dos marinheiros descontentes a convicção de que fora a cega quem exercera "malefícios" e ocasionara o mal que os magoava no momento. O desejo de possuir a Gioconda foi a verdadeira origem daquele tumulto. O infame Barnabá é uma criatura eterna na sociedade.

Mais belo exemplo se acha na tragédia Júlio César, é o magnífico discurso de Brutus ao povo romano. Grande conhecedor de sua alma, Shakespeare pôs na boca de Brutus as palavras inflamadas que levariam o povo a assassinar Antônio, se este não possuísse também a poderosa arte de dirigir a fera - a multidão - que o ameaçava.

A habilidade do boateiro está, como em regra nos fenômenos desse grupo da psicopatologia social, em saber despertar e açular a besta humana mal amordaçada pelas coerções do meio civilizado.

O boateiro é sempre, como se disse, uma alma defeituosa, que se agita por mesquinhos interesses. Ele tem a maldade indômita que existe na maioria dos homens, embora mais ou menos escondida. Individual no nascedouro, o boato passa logo a ser coletivo em virtude da consonância que sua tendência encontra nas almas do mesmo estofo. Despine compara a propagação dos estados afetivos nas multidões ao efeito da onda sonora de uma nota musical, que faz vibrar todas as notas iguais existentes dentro da esfera atingida pelas suas ondulações. É um principio geral nos fenômenos de contágio moral.

A perversidade influi com prontidão, porque é uma qualidade mais ativa do que a bondade, afirma Sighele. Os bons em regra, não procuram fazer o mal, são passivos; os maus "querem" fazer o mal, são ativos.

Felizmente existem também almas nobres em que essa lepra já se acha, por assim dizer, extinta. Por meio dessas pessoas o boato não caminha. Isso quer dizer que a alma humana, em geral, é suscetível de aperfeiçoamento com o envolver da civilização; a consciência se alarga no correr da evolução. É ao menos um consolo lembrar que a civilização irá melhorando cada vez mais a sociedade, onde vicejam ainda esses males, por enquanto irremediáveis. Também, se o conhecedor da alma humana só enxergasse ai o que há de mal, morreria de pavor.

O aperfeiçoamento da consciência chegará a extinguir o boato no dia em que a maioria dos homens tiver clara intuição do que acontece atualmente, em casos raros, quando um cúmplice do boateiro encontra um homem bom ele narra uma calúnia, mais ou menos nestes termos:

"Sabe que "se anda dizendo" de F...? Dizem que fez isto, aquilo e mais aquilo. Eu não creio, mas me garantiram e de fonte limpa. Estou dizendo só aqui entre nós; não convém falar, porque talvez seja invencionice. Em todo o caso é uma pena, se é verdade."

O homem bom fixa então os olhos semicerrados sobre o narrador e diz mentalmente:

"Miserável, infame! Não tens nem força para sufocar o prazer que isso te causa. Não inventaste, talvez, a mentira; mas o inventor contava contigo, com a tua covardia, com a torpeza de tua alma igual à dele, para colaborar no trabalho essencial - o da divulgação da infâmia. E tu contavas comigo, salafrário! porque não tens consciência do vil papel que neste momento representas."

Ora, aí está como as coisas se passam, embora excepcionalmente. Na quase generalidade dos casos, entretanto, o patife encontra um homem de sua igualha, que sente o mesmo prazer que ele e vão logo adiante, confidencialmente, com ar muito contristado, na rara infâmia a um outro, e assim se espalha o boato com extrema rapidez. Ainda há pouco vimos como se espalhou no norte do Brasil o boato de uma vaia ao presidente da República, aqui em São Paulo, vaia que não passou de pura fantasia de um boateiro soez.

Há indivíduos mais afoitos, felizmente raros, que vão a um jornal e dão a falsa noticia da morte de um cidadão que está bem vivo em sua casa, onde recebe com espanto a lutuosa noticia... Os jornais já tomaram, entretanto, suas cautelas e esses casos são raríssimos. Vimos essa maldade praticada em São Paulo e não há muito anos.

Há uma diferença enorme entre o indivíduo que recebe com verdadeiro pesar uma falsa notícia e o cúmplice do boateiro, isto é, o que tem prazer em espalhá-la. O primeiro cala-se, ou procura saber de quem partiu a notícia; vai ao encontro da vitima e diz francamente quem lhe comunicara o fato. O outro não; esconde a fonte de onde lhe viera a notícia; pactua com os malfeitores e finge pudor ou discrição, sem se lembrar que em tal caso não se trata disso; ao contrário, deve-se pôr tudo à luz do sol.

É muito difícil descobrir no meio dessa obra de colaboração anônima, o verdadeiro autor dessas infâmias. O professor Jung, de Zurique, conseguiu, no caso fácil e no meio restrito de um colégio de meninas, averiguar de onde partira o boato que difamava um professor. Fez com que todos os conhecedores da notícia a escrevessem como a receberam. Notou ele o fato que nós expressamos no ditado português: "quem conta um conto aumenta um ponto". Cada um contou o fato com particularidades que variavam entre os diversos narradores; só o núcleo essencial do boato era o mesmo para todos. A invencionice era narrada como um sonho e deixava perceber um desejo erótico que inconscientemente dominava a menina, autora do boato. Tratava-se de um caso típico da mitomania de que tanto se ocupou Dupré, médico da prefeitura de Paris.

Fora desses casos, assim limitados a um meio restrito, é impossível descobrir o verdadeiro autor, no meio de tantos colaboradores.

Há épocas mais propicias, como todos sabem, para o nascimento e divulgação do boato como há tanto tempo favorável às plantações na vida agrícola. São as épocas de intensas agitações emotivas - de guerra, de epidemia, de revolução política etc.

A ambição, outra tendência fundamental humana, permite também do mesmo modo que a maldade, a criação de uma atmosférica especial em que se observam curiosos episódios de sugestão e contágio, alguns dos quais revertem em castigo cômico contra os próprios ambiciosos. Temos o exemplo na célebre fortuna que se acreditou existir num banco inglês, pertencente a brasileiros, descendentes de Amador Bueno da Ribeira. Um advogado velhaco, psicólogo prático, mandou do Rio de Janeiro, noticiar em São Paulo, há mais de trinta anos, que tinha meios de liquidar essa fortuna e distribuí-la aos supostos herdeiros de Amador Bueno. Para tanto exigia ele que cada um lhe mandasse apenas cinqüenta mil réis junto ao nome que o habilitasse como herdeiro. Eram herdeiros todas as pessoas que tinham no sobrenome - Bueno, Silveira etc. Ora! formigaram descendentes de Amador Bueno e choveram notas de cinqüenta mil réis que deram magnífico resultado ao pândego mistificador.

Vimos nessa ocasião muita gente séria, carrancuda e circunspecta, entrar com o seu dinheirinho e discutir convictamente sobre a parte que lhe poderia caber.

Passado algum tempo, o insaciável advogado, precisando de mais dinheiro, mandou um mensageiro fazer nova colheita, para a qual trouxera instruções muito especiais. Só podiam pagar novo tributo os que tinham tais e tais sobrenomes; os outros estavam excluídos. Muitos dos excluídos importunavam a gente para conseguir entrar com as suas cotas. Nada o demovia; era preciso dar uma feição de seriedade a tal bandalheira. A nova colheita deu ainda magnífico resultado. A herança não apareceu até hoje, mas os contribuintes tiveram seu momento de prazer... de viver um sonho por algum tempo.

É de crer que ainda existam por esse mundo alguns dos sonhadores que naquela época concorreram para os regabofes do advogado.

O boato nem sempre é expansão de malvadez recalcada; há o boato tendencioso e o boato inócuo. Sua origem primeira é sempre um desejo inconfessável e freqüentemente inconsciente.

A perversidade geral da alma humana que serve de terreno onde se desenvolve o boato, é sempre inconsciente.

Caminha para a perfeição espiritual aquele que consegue tornar consciente a maior parte da maldade que lhe existe no inconsciente, e assim pode dominá-la. Ainda estamos longe da perfeição; não podemos exigir a extinção do boato.

Buscar na literatura, na obra de arte, o exemplo concreto, confirmador de uma doutrina exposta em princípios gerais, é hoje moda e fundada em boas razões. Quem quiser ler um belíssimo exemplo de boato em lugarejo do interior, encontrá-lo-á na novela de Amadeu Amaral A Pulseira de Ferro. Aí se acha o fenômeno magistralmente descrito.

Franco da Rocha