Reflexões sobre a Vaidade dos Homens/CIX

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Sim é soberba a fermosura, mas não é para admirar, pois é grande o seu império; é vaidosa, mas como pode não o ser? É presumida, mas que muito se em se vendo, a sua mesma vista a lisonjeia? É tirana, que importa, se é virtude esse defeito, e se nela a bondade é culpa? Na fermosura acha-se a circunstância mais essencial da luz; esta ilustra, e faz claros os objectos, que estão perto dos seus raios; assim a beleza, pois parece faz fermosos aqueles vícios que a acompanham; essa fereza, essa arrogância, e essa mesma condição altiva, sim são imperfeições grandes na beleza, mas são como as sombras, que um delicado pincel debuxa, e representa, não para desluzir o primor da arte, mas para realçar a fineza da pintura. Uma estrela brilha mais no espantoso silêncio de uma noite escura; a mais perfeita luz é a do Sol, contudo a sua actividade nos molesta, e escandaliza: as cousas nem por mais perfeitas nos agradam mais; antes alguma imperfeição as modifica em forma que ficam proporcionadas ao nosso gosto; aquilo que é perfeito em um certo grau, excede a nossa esfera, e por isso nem o podemos gozar, nem entender, porque o desejo não se estende adonde a compreensão não chega. O entendimento, ou a alma é o que primeiro move, e assim tudo o que excede a nossa inteligência, fica sendo impenetrável ao nosso afecto. Mil cousas há perfeitas no seu género, por onde continuamente passamos sem reparo; a mesma perfeição nos cega, e nos faz incapazes de admirar; tudo o que distinguimos, ou sabemos, é por comparação; de sorte que em não podendo comparar, também não podemos conhecer: a diferença das cousas entre si, é a que desperta a nossa atenção, e dá lugar ao nosso conhecimento; por isso tudo o que é formado como de um só rasgo, de uma só linha, ou como de um só alento, logo nos fica sendo incompreensível; o discurso não pode entrar naquilo em que tudo é um, igual, ou uniforme; porque a unidade não admite combinação, e o pensamento não pode introduzir-se facilmente donde tudo é o mesmo, e donde não há nem diversidade de substância, nem desigualdade de matéria. Podemos dizer, que a nossa capacidade só tem por objecto aquilo que é composto; porém tudo o que é simples absolutamente fica sendo mistério para nós, e por isso sempre oculto, e escondido; e assim a divisão, e variedade de partes, ao mesmo tempo que indica um ser imperfeito, também serve de meio, que nos facilita a inteligência das cousas, e nos conduz ao conhecimento delas; e desta sorte alguma imperfeição na fermosura, faz-nos ver melhor o que ela tem de raro, e de admirável; algum defeito, mostra-nos o que por outra parte ela tem de singular; e finalmente algum vício, faz-nos reparar o que se encontra nela de virtude; e assim serve-nos de guia essa imperfeição, esse vício, e esse defeito.