Reflexões sobre a Vaidade dos Homens/CXXVII

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A vaidade das letras é maior do que a vaidade das armas; estas sim têm ocasiões de maior pompa, de maior grandeza, e de maior admiração; mas tudo nas armas é semelhante ao raio, cuja luz, e estrépito se extingue em um instante. Os Heróis nunca chegam a durar um século; as suas acções não duram mais, se a fortuna lhes não dá na república das letras alguma pena ilustre, que conserve a vida daquelas mesmas acções, já sucedidas, já passadas, e já mortas. A vaidade das ciências por ser uma vaidade pacífica na aparência, não deixa de ser altiva, e arrogante. As águas, que vão fazendo escumas, e que correm com ruído, não são as que assustam mais; aquelas que parecem negras, que passam em silêncio, e que apenas se movem, essas são donde o perigo é certo: nas praias é donde o mar se levanta mais, e faz estrondo; donde é pego verdadeiro, em que as ondas como em campo largo em si mesmas se abrem, se suspendem, e revolvem, não tem o mar bramidos, nem furor, mas é lá donde o risco é grande. O dano não costuma estar tanto, donde se mostra, como donde se esconde: assim são as letras, e assim são as armas; estas fazem o rumor, aquelas o estrago; as armas fazem o mal, mas acabam com ele, as letras o mal que fazem, dura; as armas cansam, as letras não; a espada nem sempre pode usar de força, e de traição; a pena sempre pode ser traidora, e aleivosa; é arma que não pode acautelar-se; quanto mais leve, e mais subtil, mais perigosa; daqui vem o serem as letras de algum modo inexpugnáveis, e por consequência vaidosas, porque o ser invencível precisamente influi vaidade; o combate das ciências entre si, são combates invisíveis, em que ninguém se rende; e o render-se valeria o mesmo, que uma confissão expressa de ignorância; e com efeito, de quem cede, nunca se presume haver cedido, porque conheceu a razão alheia, mas por falta de saber sustentar a sua; a fraqueza não se atribui à proposição, mas a quem a defende; de sorte, que a ciência não consiste em saber conhecer, mas em saber responder, e arguir; por isso quem mais disse, é quem mais soube: as letras não se costumam tomar pelo peso, mas pelo volume; fazem-se recomendáveis pela extensão; o ponto é que cresçam na quantidade, a qualidade é matéria indiferente; elas não avultam pelo que são, mas pelo que soam; regulam-se pelo aparato, e não pela substância; estimam-se pelo que parecem, e não pelo que valem; o que importa nelas, é ter no exterior um brilhante falso, cujo resplendor furtado escandalize os olhos de quem o quiser ver de perto; basta que a atenção fique assombrada com o aspecto de uma imagem nova, ainda que na verdade não seja mais que uma fantasma; a superfície deve estar coberta de uma claridade intensa, e forte; o fundo seja embora confusão, cegueira, caos. Só o que é precioso, é todo o mesmo em si, e o mesmo em todas as suas dimensões: o diamante não tem parte em que não seja diamante; a roda que o pule, por mais que lhe multiplique as faces, em todas o acha igualmente duro; não é mais sólido em um lugar, que em outro; a porção, que o engaste cobre, não é inferior àquela que se mostra; a luz por toda a parte encontra nele a mesma resistência, por isso retrocede reflectida, como em vibrações de várias cores. Não são assim comummente as letras; o que há nelas de agradável, é o que fica exposto à vista, e por isso ornado de emblemas, de proporções, de correspondências, e figuras; o mais é um labirinto informe, rude, e indigesto; o metal burnido aplicado fora, não deixa ver por dentro o pau sem lustro, nem valor.