Reflexões sobre a Vaidade dos Homens/CXXX

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Os sábios da terra não são os mais próprios para o governo dela. As Repúblicas, que se fundaram, ou se quiseram governar por sábios, perderam-se, acabaram-se; temos notícia delas pelo que foram, e não pelo que são. Roma, essa ilustre capital do mundo, ou ao menos da maior República, que o mundo viu; essa universal conquistadora, para cuja glória concorreu a fortuna mais constante, e cujo poder se manifesta ainda, ou já referido nos seus Fastos, ou já representado nos vestígios preciosos das ruínas, como em obeliscos, arcos triunfais, colunas, circos, aquedutos, urnas sepulcrais; essa Cidade altiva em que o mundo se quis resumir, e abreviar; ela mesma conta a decadência do seu esplendor nativo, do tempo em que as ciências chegaram ao maior auge. Júlio César, famoso Herói, e sábio Capitão, foi o que nos campos de Farsália cortou de um golpe inevitável a liberdade à pátria, e se fez ao mesmo tempo senhor dela. Quem dissera a Roma, que no seu próprio seio se haviam de forjar os seus primeiros ferros; e que as fachas para a abrasar, se haviam de acender dentro dos seus muros! Roma, sempre vencedora, e invencível, cessou de o ser, assim que achou em um filho ingrato um sábio armado. As maiores crueldades, ou foram feitas, ou aconselhadas pelos Sábios; estes quando persuadem o mal, é com tanta veemência, e tão eficazmente, que as gentes na boa fé, buscam, e praticam esse mal, como por entusiasmo, e sem advertirem nele. A impiedade, é uma das cousas que a ciência ensina; não porque esse seja o seu objecto, ou instituto, mas porque quando a impiedade é útil, à força de a ornar, se lhe tira o horror. A vaidade das ciências não consente, que haja cousa de que ela não possa, nem se saiba aproveitar. Os erros comummente são partos da sabedoria humana; o errar propriamente é dos sábios, porque o erro supõe conselho, e premeditação; os ignorantes quási que obram por instinto; a ciência sabe legitimar o erro, a ignorância não; por isso nesta não há perigo de que niguém o aprove; em lugar que naquela há o perigo de que a multidão o siga. O erro na mão de um sábio é como uma lança penetrante, e forte; na mão de um ignorante, é como uma arma quebrada, sem uso, nem consequência. As cousas parece que recebem mais da forma, que se lhes dá, que da natureza que têm; não se atende à substância do mármore, ao polido sim; a dureza importa menos que a figura. As ciências são as que dão o lustre às cousas, e sempre dão o lustre que lhes parece; ou duvidoso, ou falso, ou verdadeiro; a vaidade, é o artífice.