Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXVII
O nosso engenho todo se esforça em pôr as cousas em uma perspectiva tal, que vistas de um certo modo, fiquem parecendo o que nós queremos, que elas sejam, e não o que elas são. O discurso é como um intrumento lisonjeiro, por meio do qual vemos as cousas, grandes, ou pequenas, falsas, ou verdadeiras. O nosso pensamento não se acomoda às cousas, acomoda-se ao nosso gosto. O amor, a vaidade, e o interesse são os moldes em que as cousas se formam, e configuram para se apresentarem a nós; e com efeito nenhuma cousa se nos mostra como é, contra nossa vontade. Nunca estamos tão indiferentes, como nos parece; as paixões não consentem neutralidade; aquilo que entendemos, que nos não importa, costuma levar consigo um interesse oculto, por onde nos importa mais. O amor, e a vaidade às vezes se concentram, e disfarçam tanto, que nós mesmos dentro de nós, os não podemos descobrir; apenas se fazem visíveis pelas obras, semelhantes ao fogo escondido na pederneira, que se não deixa ver, se não é incitado pelo impulso do fusil: daqui vem que tudo o que fazemos, é sem perceber o princípio por que fazemos; por isso o que se faz por amor, ou vaidade, parece-nos que é feito por zelo, ou por virtude. Qual é o hipócrita, que conhece a sua hipocrisia? Qual é o vanglorioso, que conhece a sua vaidade? Qual é o amante, que conhece o seu delírio? Que fácil cousa é o distinguir tudo nos outros, e que dificultoso o distinguir alguma cousa em si! Qual é o pai, a quem o filho parece enorme? Não só há geração de filhos; também há geração de acções: as nossas maldades não nos parecem mal, porque são nossas, nós fomos os que as produzimos; a natureza não só é mãe do que faz perfeito, mas também do que faz defeituoso; é piedosa ainda com um monstro, não por ser monstro, mas porque ela o fez; a terra não só cria a rosa, mas também os seus espinhos; não se empenha em produzir o bom, mas em produzir; a perfeição de alguma sorte não se compreende na ordem da maternidade, mas é cousa como adventícia, estrangeira, e acidental. Nas acções dos homens também deve de haver alguma espécie de fecundidade; esta fica satisfeita só com as acções, contenta-se com ser progenitora; a qualidade do que produz fica sendo como matéria separada; por isso a nossa inclinação toda se dirige a obrar; a qualidade da obra, é eleição do amor, do interesse, e da vaidade. Origem depravada, péssimos consultores! Que pode obrar o amor, senão desvarios? Que se pode esperar do interesse, senão injustiças; e a vaidade que pode fazer, senão tiranias? Estas são as que guiam para os Claustros tantas fermosuras desgraçadas: não são desgraçadas por irem para os Claustros, mas pelo modo com que vão. Que maior desgraça do que deixar o mundo por força, e ficar nele por gosto? Como há-de chegar à terra de promissão, quem leva o Egipto na memória? Quantas estátuas de sal se haviam de ver, se as mulheres se convertessem nelas por olharem, para o século que deixam! As galas com que vão ornadas, é o encanto que lhes vai suspendendo, e enganando a dor; semelhantes ao cordeiro manso, que primeiro o cobrem de flores, para o irem entregar às chamas: ornatos alegres, e luzidos, mas funerais! Quais são as mulheres que não choram ao proferir das palavras fatais, por que se obrigam até à morte? Esta sentença irrevogável elas mesmas são as que cantando em altas vozes a publicam; mas que pouco pode encobrir o fingimento do canto a verdade da lamentação! Que doçura pode haver em uma voz agonizante? A consonância sempre se vem a terminar em pranto; aquilo não são vozes, são ecos do coração; o eco é o fim da voz que acaba; por isso todo o eco é triste, porque é fim; e com efeito o que se vê naquela hora, é o fim de uma mulher que acaba: o mesmo véu que a cobre, é luto; tudo nela são sinais de aflição, e de tormento, por isso leva os olhos abatidos, errantes, e confusos, os passos mal seguros, o aspecto vacilante, e tímido, e assim mais parece, que caminha para o túmulo, que para o tálamo: as lágrimas, fiéis intérpretes da alma, são as primeiras que reclamam tudo quanto ali se diz, e se promete; elas negam o que as palavras afirmam; a quem havemos de crer mais? Pelas lágrimas se explica a alma, pelas palavras muitas vezes se explica o engano: quem chora certamente sente, quem fala só se exprime; por força podemos dizer o que não queremos, nem sentimos, mas não se pode sentir, nem querer por força, aquilo que na verdade nem se sente, nem se quer: a língua sabe mentir, os olhos não; por isso os votos, que se fazem com violência, sempre se fazem com lágrimas, e também por isso raras vezes se cumprem; porque o coração, e a vontade não prometeram nada; aquilo que só exteriormente se promete, só exteriormente se guarda; as palavras sem tenção não formam Sacramento, o que se faz por temor, não obriga: um sacrifício involuntário, é sacrifício de sangue, e Deus não se agrada já dos holocaustos.