Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXIX
Muda a fortuna o sangue, ou ao menos parece, que o muda; e com tal variedade, e força, que aquele sangue, que algum dia foi humilde, hoje é generoso; àquele que foi esclarecido, é humilde; o que agora é abatido, tempo há-de vir em que o não seja; e o que está sendo ilustre já também algum dia deixará de o ser. Deste modo vem a depender o sangue, não só da fortuna presente, mas da passada, e da futura: não só lhe prejudica a miséria actual, mas também aquela que passou; faz-lhe mal o mal que sente, e também aquele que não pode sentir; costuma vir-lhe de longe o abatimento, ou a grandeza; por isso depende menos do estado presente em que se acha, que do estado passado em que outros se acharam; e com efeito a fortuna dos passados faz a Nobreza dos presentes, e a fortuna destes faz a Nobreza dos futuros; assim se faz a Nobreza, e se desfaz sucessivamente. A mesma fortuna prepara a Nobreza em uns, isto é, começa-a; em outros a aperfeiçoa; até que finalmente vem a acabá-la em outros; o acabá-la, é desfazê-la; todas as cousas tendem naturalmente para o seu princípio. A indigência é mais natural, ou mais certa que a abundância; esta que ilustra o sangue, é menos permanente do que a pobreza, que o abate; a decadência é mais comua, e menos inconstante; a prosperidade é a que faz a Nobreza, enquanto dura; e também é a que a desfaz, quando se aparta. A Nobreza segue os passos da fortuna; se esta é dilatada, e grande, então se forma uma Nobreza esclarecida; porque os séculos lhe escondem a sua primeira, e limitada origem. A luz, quando nasce, é débil; porém insensivelmente se fortifica; nenhum rio se mostra logo como mar; e dos que são mais celebrados, ainda se ignora o donde vêm; talvez que seja de alguma fonte humilde, e desprezada; mas como vêm de longe, a distância os enobrece, só porque oculta a tosca rocha, ou a brenha sem nome donde nascem. As cousas vãs necessitam de uma certa escuridade, que as esconda, porque como se estimam, só porque se imaginam estimáveis, se se deixam conhecer, perdem-se; a ignorância do que elas são, é o que as conserva, e atrai a si um respeito religioso. São poucas as vozes, que não sejam imprudentes; e pelo contrário, todo o silêncio é discreto, e sábio; as cousas que não se estimam por não serem conhecidas, são raras: o merecimento transpira por toda a parte, e por mais que se queira esconder, não pode; é como a claridade, que sempre busca, e acha caminhos invisíveis por onde passa: uma chama activa não se pode conter; ela se descobre, o mesmo fumo lhe serve de indício. Não é isto assim na vaidade da Nobreza, porque a esta o que convém é ter um princípio impenetrável, e que esteja involvido em sombras tais, que o exame as não possa romper; e que esse mesmo exame, já confuso, e embaraçado, não chegue senão até àquela parte, donde a Nobreza está mais brilhante, e clara; e se lhe fosse fácil andar mais, de sucessão em sucessão, lá havia de encontrar os sinais, ou vestígios da miséria, e junto a esta inseparável a vileza; assim, bem podemos assentar, que a vaidade da Nobreza é uma introdução supersticiosa, a qual nasce da vaidade do luxo, da vaidade da arrogância, e da vaidade da fortuna.