Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LX
Com os anos imos mudando de umas vaidades par outras; não porque queiramos mudar de vaidade, mas porque algumas há, que em certos anos são incompatíveis, e só têm lugar em outros. A gentileza é a primeira vaidade, que a natureza nos inspira; vaidade simples, e inocente ainda quando é mentirosa: a natureza quer que nos amemos, por isso faz que nos vejamos dotados de uma forma, ou figura encantadora; somos Narcisos logo no berço: a nossa imagem apenas acabada de formar, logo nos atrai; o vidro que a representa nos agrada, e lisonjeia, ainda quando ignoramos o artifício do cristal; e desta sorte imos passando sucessivamente a vida, entretidos em um laberinto de vaidades, até que chegamos à vaidade dos velhos; vaidade discursiva, prudencial, histórica, e muitas vezes imbecil. O ser antigo não dá juízo a todos, antes o tira, porque o tempo insensivelmente vai destruindo o homem em todas as suas partes, e por mais, que o não sintamos, o que primeiro cansa, é o entendimento; porque este é como a força, que até um certo tempo cresce, até outro se conserva, e depois sempre vai diminuindo. Perdemos a inocência assim que entramos a ter uso de razão, e perdemos a razão assim que tornamos ao estado da inocência: uma e outra cousa são virtudes puras, e excelentes, mas insaciáveis. Primeiramente adquirimos a razão à custa da inocência, e depois alcançamos a inocência à custa da razão; não sei quando é que perdemos, ou ganhamos. Indiscretamente fazemos vaidade de sermos entendidos: o entendimento parece que nos foi dado por castigo, pois com ele ficamos sem desculpa para nada. Que maior mal!