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Relatório do Mestre de Campo de Engenheiros ao Vice-Rei, Conde de Sabugosa, em 1721

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Miguel Pereira da Costa – Do relatório apresentado ao Vice-Rei Vasco Fernandes César em 1721 – Pelo Mestre de Campo de Engenheiros.[1]

A três léguas de Mato Grosso[2], por áspero caminho de morros e penedias, está o riacho que minerou o coronel paulista Sebastião Raposo, o qual vindo de São Paulo com toda a comitiva que lá tinha, de escravos e de índios e mucamas[3], de que tinha vários filhos, se meteu por aquelas serras, onde já alguns tinham andado sem descobrirem ouro de boa pinta; mas este, como tivesse muita experiência, e fizesse seus exames, lhe agradou o sítio e assim plantou suas roças nos capões do mato, que achou vizinhos, e fez ali seu arraial. Capões chamam a algumas porções de mato que se acham por aquelas terras e campos, e derrubando a machado lhe põe fogo para depois plantarem milho, mantimento ordinário daquelas partes: este paulista, diziam, se retirara de São Paulo e Minas Gerais, receoso das ordens do Tribunal do Santo Ofício; e ao que parecia a todos a vida era má e o coração cruel porque matava por causas mui leves, e a sua gente o servia muito violentada, pois a cada hora esperava cada qual deles a da sua morte; tanto assim que no caminho não o podendo já acompanhar duas das suas mucamas, de cansadas, no meio de uns serros matou uma e despenhou outra, dizendo que não queria deixá-las vivas só para não servirem a outrem.

Assentando o seu arraial na dita paragem, entrou a minerar, pondo vigias nas partes mais altas, e sentinelas no caminho, para que não deixassem lá chegar alguém; como era poderoso, com o temor conservava o seu respeito e despótico império.

Teve tal fortuna, que achou o ouro a quatro ou cinco palmos de cova da sua formação, e trabalhava no princípio com oitenta bateias; mas dando com ouro grande, meteu toda a comitiva, curumins e fêmeas a trabalhar, com que chegou a trazer ao riacho cento e trinta bateias; já então desprezava o ouro miúdo, por não gastar tempo nas lavagens, e assim mandava despejar as bateias e só buscava pedaços, folhetas e grãos maiores, castigando fortemente alguns que lhe davam de jornal só uma libra de ouro; o que mais admiração faz, não tendo nada de paradoxo, é tirar um pedaço de arroba e meia, do feitio da asa de um tacho, e ainda mais, que em um dia dando na maior mancha trabalhou desde a madrugada até as dez da noite, valendo-se por isso de fachos, e apurou nela nove arrobas.

Havia trazido o dito paulista consigo em companhia um sobrinho chamado Antônio de Almeida ao qual e aos poucos da sua comitiva não permitia a minerarem junto com a sua fábrica; mas separados, vinham mais atrás revolvendo a terra e cascalho já movido em cujos fragmentos tiravam quantidade de ouro.

Parte já o dito Raposo, ou tendo ouro que bastasse à sua ambição, ou porque as grandezas não continuavam com igual rendimento, ou receoso de que com aquela fama se ajuntasse algum poder maior que o destruísse, se ausentou com os seus pelo mato dentro para estes sertões, tendo minerado no dito riacho por uma colina que o terreno faz a distância de um oitavo de légua, e neste tirou todo o ouro que levou, em que falou sempre com vivacidade; e duvidando eu do número de arrobas que nesta cidade e por este sertão tinha ouvido que ele tirara, entrei a averiguá-la com maior exame, e assim vendo entre aqueles homens alguns de mais capacidade, e um deles confidente do dito Raposo, a quem comprava gados e mantimentos para a fábrica de seu trabalho, e por esta causa lhe permitira entrar nas suas lavras, e tirar delas muita utilidade; e vendo também entre os paulistas alguns capazes a um mameluco do dito Raposo, e que pôde escapar-lhe uma noite depois de se meter no sertão, por recear que o matasse; de cada um deles colhi, separadamente, o que deste Coronel Sebastião Raposo relato, que me persuado ser o mais verdadeiro, por serem estes o que melhor podiam sabê-lo indagá-lo os da sua companhia; e assim unanimemente concordaram em que o dito paulista levava seguramente quarenta arrobas de ouro;[4] assim pela grandeza com que o tinha achado, como pelas borrachas e surrões em que o levava orçaram aquela quantia, e também pelas cargas que lhe observavam quando se retirou, distinguindo-as das outras de mantimento, pois sabem estes homens as traças e sutilezas uns dos outros; e dizem que o dito Raposo nunca lhes confessara a quantia certa, e só dizia por diminutivos eu tenho aqui umas arrobinhas.

Depois de se pôr a caminho em retirada para o sertão, deu busca aos seus, que lhe pareceu levavam algum ouro e lhes achou variavelmente muitas libras; uns três e cinco, a outros, seis e nove, e então é que lhe fugiu aquele mameluco, por ser um dos mais culpados, logo se ausentou e se não soube o rumo que tomara por se meter no mato por picada nova que abrira, mas pouco depois, por alguns índios que o toparam, e por sertanejos que por esse mato encontrou se soube que, reconcentrando-se por esses sertões, na Revolta do Maranhão; e quando cheguei àqueles distritos do rio de Contas havia mais de seis meses que ele tinha partido, e corria da notícia dele ter chegado ao Piauí onde depois o mataram.

Notas e referências

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  1. Vasco Fernandes César de Meneses, primeiro Conde de Sabugosa, serviu como Vice-Rei no Brasil por quinze anos (1720 a 1735). Este relato comunica o descobrimento do ouro em Rio de Contas, na Chapada Diamantina.
  2. Refere-se o Mestre de Campo à então Freguesia de Mato Grosso, hoje um povoado pertencente à cidade de Rio de Contas.
  3. No original trazia "mucambas"; optou-se, aqui, por atualizar também essa grafia
  4. Nas medidas então usadas, a arroba equivalia a 14,7 quilogramas. Isto daria um total de 588 kg.