Ressurreição (Machado de Assis)/VIII

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O desenlace desta situação desigual entre um homem frio e uma mulher apaixonada parece que devera ser a queda da mulher: foi a queda do homem. Para triunfar da viúva, Félix contava apenas com a sua resolução; mas a viúva, além do seu amor, tinha dois auxiliares ativos e latentes: o tempo e o hábito. Cada dia que passava caía como uma gota d'água no coração do médico, e ia cavando fundo com a fria tenacidade do destino.

Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de uma situação que, algumas semanas antes, tão outra se lhe afigurava. Chame-lhe antes lógica da natureza, porque o coração de Félix, que aparentava ser de mármore, era simplesmente da nossa comum argila. Não era seguramente um coração virginal e puro; tinha uma certa dose do egoísmo que a natureza maternalmente repartiu por todos os homens, e não se pode dizer que não fosse algum tanto cético; mas estes senões exagerava-os ele de maneira que veio a perder, na imaginação dos outros, a sua fisionomia original.

As armas com que lutava eram certamente de boa têmpera, mas se valiam muito para esgrimir, valiam pouco para pelejar. Com uma mulher que apenas tivesse a soma de afeto necessária para dissimular o erro, o nosso herói ficaria na altura da reputação; mas o amor da viúva era um verdadeiro combate. Quando Félix chegou a encarar-lhe o coração, sentiu a fascinação do abismo, e caiu nele.

Esta queda, como disse, foi lenta; o médico começou a sentir que a presença da moça era para ele uma necessidade. Pesavam-lhe as ausências mais longas, e, o que era mais, vinham suavizar-lhas umas saudades, que ele definia por outro modo, mas que, em suma, eram saudades. Quando a ia ver, e à proporção que se aproximava dela, sentia bater-lhe alguma coisa dentro do peito; o médico dizia que era o sangue ainda juvenil e irrequieto. Seria uma razão fisiológica; mas havia também uma razão moral; era a lava da paixão que se ia formando e subindo até romper a garganta do vulcão. Longa foi a gestação do amor; mas quando o médico descobriu o estado de sua alma, não era centelha que se pudesse abafar, mas incêndio que lavrava e consumia tudo.

Decidam lá os doutores da Escritura qual destes dois amores é melhor, se o que vem de golpe, se o que invade a passo lento o coração. Eu por mim não sei decidir, ambos são amores, ambos têm suas energias. O de Félix parecia ter criado no silêncio uma força invencível.

Um potro arisco e selvagem, quando a mão do homem lhe põe o freio pela primeira vez, não se irrita mais do que o nosso herói no dia que sentiu violada a liberdade do seu coração. Cólera singular e insensata, mas amarga e sincera. Planeou desde logo uma separação violenta, que lhe desse tempo e armas para vencer-se a si próprio. A execução seguiu de perto a idéia; e o médico cessou repentinamente as suas visitas a Catumbi.

A ausência, porém, foi ainda um auxiliar da viúva. O despeito do médico não se aplacou, transformou-se; não acusava já a fraqueza do coração, mas a rebeldia dele. O que a princípio lhe parecera necessário para restituir-lhe a paz do espírito, começou a ter a seus olhos o caráter de ingratidão. Ingratidão, era já confessar muito, mas o médico foi além, achou-se ridículo. Aqui já não era possível a resistência. Algum homem pode gloriar-se de ser ingrato; dirá, com um moralista cético, que é uma maneira de ser independente. Mas ninguém é ridículo convencido; convencer-se é emendar-se.

A essas razões que o médico dava a si próprio, e que eram filhas da consciência, acresciam outras que ele não articulava, mas sentia, as saudades, as recordações, os desejos, a voz misteriosa e constante que lhe sussurrava aos ouvidos o nome de Lívia.

Demais, a bela viúva escreveu-lhe. Félix, como um verdadeiro namorado, jurara não abrir as cartas que ela lhe mandasse, e correu à porta para receber a primeira. Não era carta de recriminações, mas de surpresa e de lágrimas. Quando veio segunda carta, já o médico sabia a outra de cor. A segunda era a última, dizia Lívia; eram já recriminações, mas não contra ele, nem contra o destino; eram recriminações contra si mesma. A melancólica resignação da moça comoveu o médico; no fim de uma semana estava aos pés dela, fazendo ato de sincera contrição.

Lívia perdoou-lhe as lágrimas choradas durante aqueles oito dias de angustiosa incerteza. Perdoou-lhas como sabem perdoar as almas verdadeiramente boas, — sem ressentimento. Mas a causa da ausência não a explicou Félix.

— Não me perdoou já? disse o médico, quando ela lhe fez uma pergunta direta a este respeito. Isso basta; não queira saber a razão desta singular loucura, que me levou tão longe do único lugar em que me é possível a felicidade. Para minha expiação basta o que sofri também nestes oito dias e a vergonha de ter...

Calou-se; receava dizer tudo. A moça ouviu aquelas palavras com manifesta satisfação, e murmurou:

— Ciúmes?

Félix estremeceu. Uma sombra ligeira pareceu toldar-lhe os olhos. Lívia inclinou para ele o rosto como querendo ler-lhe na fisionomia a verdade que ele forcejava por esconder.

— Não, disse Félix, não foram ciúmes. Ciúmes de que e de quem?

— De ninguém, bem sei; mas está-me a parecer, Félix, que o seu amor é um pouco visionário e melindroso. Oh! não me lastimo por tão pouco; agradeço-lhe até. Que perderia eu com isso? Alguns dias de paz, talvez; mas a certeza de ser amada é uma grande compensação. O Purgatório não é uma porta que abre para o Céu? Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar. Pode ser que eu me engane, continuou ela pondo-lhe as mãos na fronte, mas eu creio que há nesta cabeça muita imaginação, e imaginação doente. Ou então...

— Ou então? repetiu o médico, vendo que ela fazia uma pausa.

— Ou então, a doença está aqui, concluiu Lívia apontando-lhe para o coração. Não importa; eu suportarei tudo, contanto que me ame.

— Oh! Lívia, exclamou Félix, depois de lhe beijar ternamente a fronte, essa resolução será o penhor do nosso futuro. Consulte o seu coração; veja se há nele bastante misericórdia para mim, e prometo-lhe que seremos felizes.

— Tudo lhe perdoarei, contanto que me ame, disse a moça.

Compreenderia ela então que dolorosa e pesada obrigação contraíra? Talvez não. Confiava em si mesma, no prestígio do seu amor, no coração de Félix, para vencer tudo, e realizar o que era agora o sonho da sua vida.

O caminho melhor para isto era seguramente o da igreja. Que obstáculo podia haver? Um e outro dependiam exclusivamente de si; o casamento era o desfecho lógico e sacramental daquele romance. Mas nem a viúva o insinuava, nem o médico o propunha, e nesta situação mal definida alguns dias correram de tranqüila felicidade.

Aos olhos estranhos buscavam ambos esconder o seu segredo; mas a reserva de Lívia era apenas a que bastava para acatar as conveniências, ao passo que a de Félix era tão completa e calculada que à própria moça iludia. Esta facilidade de dissimulação desconsolou-a. Achava-a perfeita demais. Era um sintoma de tranqüilidade que desdizia com o amor impetuoso de Félix. Demais, que razão haveria para esconder tão misteriosamente dos olhos dos outros, uma coisa que deveria e não tardaria a ser pública?

A indiferença de Félix, entretanto, não era tão completa como parecia, era uma indiferença vigilante. Quando os olhos da viúva procuravam os do médico, este desviava cautelosamente os seus; mas olhava, digamo-lo assim, por baixo da pálpebra.

Foi então que começou para ela uma vida de luta.