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Ressurreição (Machado de Assis)/V

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Dois dias depois, estando Félix a vestir-se para ir a Catumbi, entrou-lhe Meneses por casa. Vinha pálido e abatido, olhos vermelhos, passo trêmulo. Não se sentou, deixou-se cair numa cadeira.

— Que é isso? perguntou Félix.

— Está tudo acabado, respondeu ele, romperam-se os vínculos fatais. Custou-me muito, mas era necessário; foi agora há pouco; corri para cá; precisava de alguém com quem desabafasse. Isto é ridículo, bem sei; mas que queres? Eu sofro... tenho um coração miserável, e deixo-me levar por ele...

Félix pareceu condoer-se da situação do rapaz, e disse-lhe algumas palavras de animação, que ele ouviu com reconhecimento.

— Eu já desconfiava, disse Meneses, de que era traído; só tive a certeza ontem. O que mais me dói em tudo isso, continuou ele depois de alguns instantes de silêncio, é que, para servir ao homem que me traiu, desfazia-me eu em obséquios, e até, confesso-te aqui, era seu credor.

— É por isso que eu não empresto dinheiro a ninguém, respondeu Félix, penteando as suíças.

— Mas quem pode adivinhar o mal, quando nos apresentam uma fisionomia risonha? Eu confiava em ambos.

Félix encolheu os ombros.

— Toma um charuto, disse.

— Não quero fumar.

— Fuma; eu já observei que o fumo impede as lágrimas, e ao mesmo tempo leva ao cérebro uma espécie de nevoeiro salutar.

— Vais sair? perguntou Meneses, vendo que o outro punha o chapéu na cabeça.

— Vou à casa do Viana. Queres vir?

— Não posso.

— Devias vir comigo; apresentava-te à irmã dele, e passávamos algumas horas em companhia amável. Esquecerias depressa as tuas penas.

Meneses recusou; Félix levou-o no carro até à Rua do Lavradio, onde ele morava.

Em caminho conversaram dos seus extintos amores. Meneses jurava que era a última aventura a que expunha o seu coração; achava-se curado de uma vez.

— Não afirmes nada, Meneses; podes errar. Sabes o que te falta? Têmpera. Amanhã, entre duas lágrimas, aparece-te um raio de sol; e eis-te de novo namorado, confiado e arriscado.

— Oh! não! protestou Meneses.

— Quem dera que não! Mas eu estou a ler no teu rosto que a única maneira de te consolar deste naufrágio é dar-te outro navio. Só muito tarde te convencerás de que viver não é obedecer às paixões, mas aborrecê-las ou sufocá-las. Os maricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentem ou abafam o que sentem. Isto não tem réplica, meu... amigo, diria eu, se me não lembrasse do teu afortunado rival, que é positivamente um mariola. Vem à casa do Viana; hás de gostar da Lívia; parece-se contigo.

— Não posso, respondeu Meneses, que só ouvira as últimas palavras de Félix.

— Mas hás de ir depois?

— Sim, depois.

— E se te apaixonas por ela?

Meneses sorriu tristemente; o carro parou; despediram-se um do outro, e Félix seguiu para Catumbi.

Lívia estava só em casa. Fora convidada a um jantar, mas respondeu pretextando um incômodo que não tinha. O irmão encarregou-se de ir representá-la.

— Tinha o pressentimento, disse ela depois de referir estas coisas ao doutor, tinha o pressentimento de que o senhor vinha cá hoje, e não desejava que lhe acontecesse a mesma coisa que da primeira vez.

— E acredita em pressentimentos? perguntou Félix.

— Não os explico, mas acredito neles.

Lívia parecia mais bela que das outras vezes. Não só a luz natural dizia melhor com a sua tez, como também a simplicidade do vestuário era para ela um realce. Félix não dissimulou a impressão que lhe causava aquele novo aspecto da moça. Lívia, que, como toda a mulher bela, e posto não fosse vaidosa, sabia mirar-se na fisionomia dos outros, não deixou de perceber a impressão do doutor.

A cena da portinhola do carro não havia saído do espírito de Félix, que se convencera de duas coisas: primeiro, que a viúva gostava dele; depois, que era fácil triunfar da viúva. As aparências davam fundamento à opinião de que a moça o amava. Félix aproveitou a situação e dispôs-se a tirar dela todo o proveito possível. Pouco se demorou, entretanto, naquele dia. Quando anunciou que se ia embora, pediu-lhe a viúva que não esquecesse a casa.

— Aproveitarei o tempo, observou Félix, enquanto não embarcam para a Europa. Seu irmão diz-me que a viagem é breve.

— Se não houver transtorno. Em todo o caso, venha, e não faça visitas de médico.

— Eu fui médico; fiquei com esse costume, respondeu Félix sorrindo.

— Já não é médico?

— Do corpo, não.

— Mas da alma?

— Talvez. Deixei agora mesmo um doente da alma, que eu desejaria apresentar-lhe, porque estes ares dão saúde, creio eu.

— De que sofre o seu doente?

Félix sorriu-se.

— Vítima de uma inconstância, moléstia vulgar. Está no período agudo. É um pobre rapaz, inocente e singelo, que vai buscar as regras da vida nos compêndios da imaginação. Maus livros, não lhe parece?

Lívia não respondeu; estava embebida a ouvi-lo.

— Meneses não conhece outros, continuou Félix. Parece filho daquele astrólogo antigo que, estando a contemplar os astros, caiu dentro de um poço. Eu sou da opinião da velha, que apostrofou o astrólogo: "Se tu não vês o que está a teus pés, por que indagas do que está acima da tua cabeça?"

— O astrólogo podia responder, observou a viúva, que os olhos foram feitos para contemplar os astros.

— Teria razão, minha senhora, se ele pudesse suprimir os poços. Mas que é a vida senão uma combinação de astros e poços, enlevos e precipícios? O melhor meio de escapar aos precipícios é fugir aos enlevos.

Lívia ficou pensativa alguns instantes.

— O pensamento é melancólico, disse ela; contudo pode ser verdadeiro. Mas por que razão condenaremos a vida contemplativa dos que não conhecem a vida positiva? Os livros da imaginação... esses livros não são detestáveis, como o senhor disse; não os há detestáveis nem ótimos. Deus os dá conforme a ciência de cada um.

Félix despediu-se de Lívia, não enlevado, não palpitante, mas disposto a uma aventura. Amiudou as suas visitas a Catumbi, a grande aprazimento de Viana, que suspeitou alguma afeição entre os dois, e imaginara uma aliança de família.

A presença de Félix era até vantajosa naquela casa. Entre a viúva e o irmão havia um abismo. Eram dessemelhantes nos sentimentos, nos hábitos de viver, na maneira de pensar. Lívia tinha alternativas de afabilidade e rispidez, ao passo que o irmão era de uma inalterável paz de espírito. Viana tinha coisas más e boas, sendo que as coisas boas eram justamente as que se opunham ao gênio especulativo da viúva. Era homem essencialmente prático; o seu reino era todo deste mundo. Apesar das suas pretensões a rapaz estouvado e extravagante, tinha hábitos de ordem e economia. Lívia era a este respeito negligente e "meia doida", como lhe chamava o irmão; alheava-se muitas vezes das coisas que a cercavam para subir a um mundo superior e quimérico. O médico era entre ambos uma espécie de mediador plástico. Não pertencia à esfera de nenhum deles, mas sabia a maneira de os conciliar.

Félix encontrou algumas vezes em Catumbi o Dr. Batista, que ele vira dançar com a viúva em casa do coronel. Lívia não parecia prestar-lhe atenção, nem o pretendente magoar-se por isso. Era um modelo de dissimulação e cálculo. Conhecia todos os artifícios da campanha amorosa, a indiferença, o desdém, o entusiasmo, e até a resignação.

Uma noite em que saíram de lá juntos, Félix procurou sondar-lhe o espírito a respeito da moça.

— Nada há, respondeu Batista com indiferença; nem eu pretendo cortejá-la. Mas, se o pretendesse, triunfaria; a paciência é a gazua do amor.

— Não lhe parece que essa sua máxima é imoral?

— Efetivamente é assim; mas é por isso mesmo que estes amores são deliciosos.

Quinze dias depois apareceu Viana em casa de Félix. Deu-lhe parte de que a irmã já não ia para a Europa.

— Por que motivo? perguntou Félix.

— É justamente o que eu desejara saber, disse Viana com um gesto de mal contido despeito; mas estou certo de que o não saberei jamais. Aquela minha irmã não me parece ter a cabeça no seu lugar.

— Alguma razão haveria. Estará doente?

— Está de perfeita saúde.

— Quem sabe se.... algum namoro?

— Já pensei nisso, disse Viana; pode ser algum namoro.

— Naquela idade as paixões são soberanas. Seria inútil querer dissuadi-la, e ainda que não fosse inútil, seria desarrazoado, porque uma viúva moça... Ela amava muito o marido, não?

— Antes de casar, muito; três meses depois, muitíssimo; ao cabo de alguns meses, nem muito nem pouco. Toda essa história é mistério para mim...

— Não lhe vejo mistério nenhum; o casamento é justamente isso; acalma os afetos para os tornar mais duradouros. Se a paixão de sua irmã se tornou mais calma...

— Não se trata disso. Lívia não amava menos; aborrecia o marido... Mas por que nos demoraremos nestas coisas que não podemos explicar? A única explicação que lhe acho é o seu caráter esquisito. O senhor não imagina bem que eterna variação de gênio é aquela moça. Há dias em que se levanta meiga e alegre, outros em que toda ela é irritação e melancolia. Ninguém a entende, e eu menos que ninguém.

— Não esteja o senhor a exagerar uma coisa naturalíssima. Todos temos essa mesma alteração de humor. Há manhãs tristes e aziagas. Quer que lhe dê um conselho? Não a contrarie nunca, é o melhor.

— Mas o senhor há de concordar que quando a gente já preparava os beiços para ir saborear a vida parisiense...

— Há tempo para tudo, disse Félix, e o senhor ainda está moço. Iremos juntos daqui a um ano.

— Palavra?

— Palavra.