Rio Branco e Suíça
Pelos telegramas aqui recebidos até à adiantada hora da tarde em que ontem escrevíamos, devemos considerar indubitável a vitória do Brasil no pleito do Amapá, vitória cabal, sem mescla, em toda a amplitude da nossa reivindicação.
Entre a República Francesa, empenhada em que, no art. 8º do tratado de Utrecht, chave da questão debatida, o rio Japoque, ou Vicente Pinzão, era o Araguari, que se lança no oceano cerca da foz do Amazonas, e a República dos nossos Estados Unidos, firme na sua tese de que a divisória fluvial indicada por aquele nome na convenção franco-lusitana de 1713 era o Oiapoque, o governo da Confederação Suíça pronunciou o seu laudo inteiramente em nosso favor.
No seu trabalho monumental, cujos volumes nos rodeavam, ao escrever estas linhas, à mesa de trabalho, evocando a imagem do grande brasileiro cuja obra ciclópea recompôs, ao sul e ao norte, as fronteiras da pátria, dizia o Barão do Rio Branco, encerrando a primeira das suas grandes memórias: “Entende o Brasil que a sua diuturna posse na margem esquerda do Amazonas e no curso inferior dos afluentes dessa margem torna indiscutíveis os seus direitos a todos os territórios ao sul dos montes Tumucumaque e d’Acaraí.” A segunda memória, discutindo a francesa, e apresentando novos documentos, terminava com a mesma segurança, apontando como incontestavelmente demonstrada a identidade entre o nosso Oiapoque e o Japoque do texto do século dezessete. São estas as conclusões, que o árbitro subscreveu sem reservas, traçando a nossa estrema com a Guiana Francesa pelas águas do Oiapoque e os serros do Tumucumaque.
A soberba grandeza desse resultado, condigno realmente do nosso direito e do seu excelso defensor, não nos permite analisar o valor técnico dos meios, a cuja magnificência, abaixo de Deus, devemos tão insigne triunfo. Depois de vitórias como essa, que põem silêncio a questões seculares, e envergonham os loiros sinistros da guerra, a admiração se descobre, e emudece, para romper em aplausos, enquanto não volta, com a gratidão, à serenidade e, com o estudo, ao assombro. São campanhas, em que a fortuna do vencedor não imola à divinização da sua individualidade a imensa colaboração anônima de legiões sacrificadas para lhe juncarem a estrada tenebrosa da glória militar. Aí não há senão a altitude da pessoa humana, do mérito individual na solitária sublimidade do seu poder, dando-nos, sob uma expressão quase desconhecida às gerações antigas, a mais imprevista reedição dos combates singulares, transfigurados pela civilização cristã num duelo jurídico de argumentos e provas. Felizes as cabeças, que a Providência destinou, para se coroarem das palmas de tão benfazejas conquistas.
Passar por essa dita uma vez já será ter merecido muito do céu. Desfrutar o privilégio de vê-la repetir é atravessar a vida sob uma predestinação, de que a história da humanidade há de contar raros exemplos. O que constela a imortalidade dos guerreiros famosos, são as miríades e miríades de almas por ela roubadas à terra. Mas a destes pacificadores é, como as noites divinas do nosso firmamento, estrelada pelos milhões e milhões de vidas, que eles restituem à tranqüilidade, ao amor e à esperança. Hoje literalmente do Amazonas ao Prata há um nome que parece irradiar por todo o círculo do horizonte num infinito de cintilações: o do filho do emancipador dos escravos, duplicando a glória paterna com a de reintegrador do território nacional.
Ainda se não acabou, felizmente, de todo a velha rocha, cuja solidez moral se afirma nestes últimos espécimens de trabalhadores austeros, de inteiriços brasileiros, apaixonados da pátria intacta, da grande pátria, da pátria primitiva. Este vive nessa absorção como o anacoreta na sua fé. Encarnação de uma causa quase abandonada, não sai da sombra da sua remota soledade, senão para salvar a honra da sua terra, e provar que ela existe, fazendo-a exteriormente grande, ilesa, inviolada, enquanto no interior a sua decomposição é a exclusiva tarefa da geração contemporânea. Que nos ensine esta lição a não acabar de perder a consciência do nosso papel, a dignidade do nosso direito, o vigor da nossa respeitabilidade, a grandeza do nosso passado.
Os povos vivem da sua tradição; e, quando perdem, com a memória e o respeito dela, a sua continuidade histórica, estão condenados a desaparecer. Entre os seus cimos e as suas neves, essa pobre, formosa e severa Helvécia, perpetuamente nova no seu verdor reflorescente de século em século, parece desafiar com as suas instituições a eternidade. É que o gênio dos antepassados se lhe reproduz inextinguivelmente nos netos. Daí esse prestígio, essa rijeza, essa incorruptibilidade, que põem nos alcantis das suas montanhas a coroa da Europa Bendita e a incomparável soberania, chamada a igualar, pela justiça entre as nações, os mais fracos aos mais poderosos. Nunca a sua magistratura teve uma representação mais solene. Para esse tribunal aquele advogado; para aquele advogado, esse tribunal.