S. Bernardo (1934)/Capítulo II
II
Abandonei a empresa, mas um dia destes ouvi novo pio de coruja — e iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus proprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer vantagem, directa ou indirecta.
Afinal foi bom privar-me da cooperação de padre Silvestre, de João Nogueira e do Gondim. Ha factos que eu não revelaria, cara a cara, a ninguem. Vou narral-os porque a obra será publicada com pseudonymo. E se souberem que o auctor sou eu, naturalmente me chamarão potoqueiro.
Continuemos. Tenciono contar a minha historia. Difficil. Talvez deixe de mencionar particularidades uteis, que me pareçam accessorias e dispensaveis. Tambem pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie sufficientemente na comprehensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda.
Aqui sentado á mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo ás vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite ennegrece, digo a mim mesmo que esta penna é um objecto pesado. Não estou acostumado a pensar. Levanto-me, chego á janella que deita para a horta. Casimiro Lopes pergunta se me falta alguma coisa.
— Não.
Casimiro Lopes acocora-se num canto. Volto a sentar-me, releio estes periodos chinfrins.
Ora vejam. Se eu possuisse metade da instrucção de Magdalena, encoivarava isto brincando. Reconheço finalmente que aquella papelada tinha prestimo.
O que é certo é que, a respeito de letras, sou versado em estatistica, pecuaria, agricultura, escripturação mercantil, conhecimentos inuteis neste genero. Recorrendo a elles, arrisco-me a usar expressões technicas, desconhecidas do publico, e a ser tido por pedante. Sahindo d’ahi, a minha ignorancia é completa. E não vou, está claro, aos cincoenta annos, munir-me de noções que não obtive na mocidade.
Não obtive, porque ellas não me tentavam e porque me orientei num sentido differente. O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S. Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular. Tudo isso é facil quando está terminado e embira-se em duas linhas, mas para o sujeito que vai começar, olha os quatro cantos e não tem em que se pegue, as difficuldades são terriveis. Ha tambem a capella, que fiz por insinuações de padre Silvestre.
Occupado com esses emprehendimentos, não alcancei a sciencia do João Nogueira nem as tolices do Gondim. As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literaria, se quizerem. Se não quizerem, pouco se perde. Não pretendo bancar escriptor. É tarde para mudar de profissão. E o pequeno que ali está chorando necessita quem o encaminhe e lhe ensine as regras de bem viver.
— Então para que escreve?
— Sei lá!
O peor é que já estraguei diversas folhas e ainda não principiei.
— Maria das Dores, outra chicara de café.
Dois capitulos perdidos. Talvez não fosse mau aproveitar os do Gondim, depois de expurgados.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
