S. Bernardo (1934)/Capítulo IV
IV
Resolvi estabelecer-me aqui na minha terra, municipio de Viçosa, Alagoas, e logo planeei adquirir a propriedade S. Bernardo, onde trabalhei, no eito, com salario de cinco tostões.
Meu antigo patrão, Salustiano Padilha, que tinha levado uma vida de economias indecentes para fazer o filho doutor, acabara morrendo do estomago e de fome sem ver na familia o titulo que ambicionava. Como quem não quer nada, procurei avistar-me com Padilha moço (Luiz). Encontrei-o no bilhar, jogando baccará e completamente bebedo. Está claro que o jogo é uma profissão, embora censuravel, mas o homem que bebe jogando não tem juizo. Aperuei meia hora e percebi que o rapaz era pechote e estava sendo roubado descaradamente.
Travei amizade com elle e em dois mezes emprestei-lhe dois contos de reis, que elle sapecou depressa na orelha da sota e em folias de bacalhau e aguardente, com femeas ratuinas, no Pão sem Miolo. Vi essas maluqueiras bastante satisfeito, e quando um dia, de novo quebrado, elle me veio convidar para um S. João na fazenda, afrouxei mais quinhentos mil reis. Ao ver a letra, fingi desprendimento.
— Para que isso? Entre nós... Formalidades.
Mas guardei o papel.
Achei a propriedade em cacos: mato, lama e potó como os diabos. A casa grande tinha paredes cahidas, e os caminhos estavam quasi intransitaveis. Mas que terra excellente!
Á noite, emquanto a negra sambava, num forrobodó empestado, levantando poeira na sala, e a musica de zabumba e pifanos tocava o hymno nacional, Padilha andava com um lote de caboclas fazendo voltas em redor dum tacho de cangica, no pateo que os mussambês invadiam. Tirei-o desse interessante divertimento:
— Porque é que você não cultiva S. Bernardo?
— Como? perguntou Padilha esfregando os olhos por causa da fumaça e encostando-se a um mamoeiro que murchava ao calor do fogo.
— Tractores, arados, uma agricultura decente. Você nunca pensou? Quanto julga que isto rende, sendo bem aproveitado?
Luiz Padilha revelou com a mão e com o beiço ignorancia lastimavel num proprietario e, sem ligar importancia ao assumpto, voltou ás rodas interrompidas e ás caboclas. Mas de madrugada, numa carraspana terrivel, importunou-me gemendo palavras desconnexas. A cada solavanco do carro de bois que nos conduzia á cidade, levantava a cabeça:
— Tudo rico, seu Paulo. Vai ser uma desgraceira.
Agarrava-se a um fueiro do carro e punha-se a vomitar. Depois pegava no somno para accordar agoniado e arrotando:
— Arados, não ha nada como os arados.
Appareceu-me no dia seguinte, ainda com vestigios do pifão:
— Seu Paulo Honorio, venho consultal-o. O senhor, homem pratico...
— Ás ordens.
— Creio que já lhe disse que resolvi cultivar a fazenda.
— Mais ou menos.
— Resolvi. Aquillo como está não convem. Produz bastante, mas poderá produzir muito mais. Com arados... O senhor não acha? Tenho pensado numa plantação de mandioca e numa fabrica de farinha, moderna. Que diz?
Burrice. Estragar terra tão fertil plantando mandioca!
— É bom.
E não prestei mais attenção ao caso, deixei que elle se enthusiasmasse só e fosse discutir o seu projecto no Gurganema, á noite, ao som do violão. Realmente transformou-se. Nas pedras do Parahyba, com um cesto de cajus e uma garrafa de cachaça, aperreava os companheiros de farra declamando sementes e adubos chimicos. Tornou-se regularmente vaidoso, desejava aprender agronomia, e em pouco tempo a cidade inteira conheceu as plantações, as machinas, a fabrica de farinha.
— Como vai a lavoura, Padilha?
A principio respondia, depois comprehendeu o ridiculo e deu para se esquivar, maguado com as perfidias dos amigos.
— Selvagens! rosnava aguentando as batotas no baccará. Vamos para diante.
E a gente ficava sem saber se elle se referia aos parceiros que o pellavam ou aos camaradas que mangavam delle. Procurou-me e desabafou:
— Selvagens! Um emprehendimento de vulto, o senhor está vendo, e esses burros vêm com picuinha. Aqui ninguem entende nada, seu Paulo, isto é um lugar infeliz. Aqui só se cogita de safadeza e pulhice.
Cheio de amargura, abalada a decisão dos primeiros dias, confessou-me que tinha tentado contrahir um emprestimo com o Pereira.
— Cavallo! Fiz uma exposição minuciosa, demonstrei cabalmente que o negocio é magnifico. Não acreditou, disse que estava no pau da arara. E eu calculei que talvez a transacção lhe interessasse. Quer desembolsar ahi uns vinte contos?
Examinei sorrindo aquelle bichinho amarello, de beiços delgados e dentes podres.
— Oh Padilha, gracejei, você já fechou cigarros?
Padilha comprava cigarros feitos.
— É mais commodo, concordei, mas é mais caro. Pois, Padilha, se você tivesse fechado cigarros, sabia como é difficil enrolar um milheiro delles. Imagine agora que dá mais trabalho ganhar dez tostões que fechar um cigarro. E um conto de reis tem mil notas de dez tostões. Vinte contos de reis são vinte mil notas de dez tostões. Parece que você ignora isto. Fala em vinte contos assim com essa carinha, como se dinheiro fosse papel sujo. Dinheiro é dinheiro.
Padilha baixou a cabeça e resmungou amuado que sabia contar. Sahiu, voltou outras vezes, insistindo.
— Eu sou capitalista, homem? Você quer-me arrasar?
Padilha resingava e offerecia a hypotheca de S. Bernardo.
— Bobagem! S. Bernardo não vale o que um periquito roe. O Pereira tem razão. Seu pae esbagaçou a propriedade.
Afinal prometti vagamente:
— Está bem. Vou reflectir.
No outro dia ainda estava reflectindo:
— Vamos ver, Padilha. Dinheiro é dinheiro.
Passei uma semana nesse jogo, colhendo informações sobre a idade, a saude e a fortuna do velho Mendonça. Quando me decidi, sujeitos prudentes juraram que eu estava doido.
Padilha recebeu os vinte contos (menos o que me devia e os juros), comprou uma typographia e fundou o “Correio de Viçosa”, folha politica, noticiosa, independente, que teve apenas quatro numeroso e foi substituida pelo “Gremio Literario e Recreativo”. Azevedo Gondim elaborou os estatutos, e na primeira sessão de assembléa geral Padilha foi acclamado socio benemerito e presidente honorario perpetuo.
Relativamente á agricultura Luiz Padilha acuou, esperando uns catalogos de machinas, que nunca chegaram. Começou a fugir de mim. Se me encontrava, encolhia-se, fingia-se distrahido, embicava o chapeo. No vencimento da primeira letra adoeceu. Fui visital-o e achei-o escondido na sala de jantar, jogando gamão com João Nogueira. Vendo-me, atrapalhou-se tanto que os dedos magros, queimados, de unhas roidas, tremiam chocalhando os dados.
D’ahi em diante encantou-se. Disseram-me que tinha ensebado as cannelas para S. Bernardo.
— Que estará fazendo por lá?
A ultima letra se venceu num dia de inverno. Chovia que era um Deus nos acuda. De manhã cedinho mandei Casimiro Lopes sellar o cavallo, vesti o capote e parti. Duas leguas em quatro horas. O caminho era um atoleiro sem fim: Avistei as chaminés do engenho do Mendonça e a faixa de terra que sempre foi motivo de questão entre elle e Salustiano Padilha. Agora as cercas de Bom Successo iam comendo S. Bernardo.
Dirigi-me á casa grande, que parecia mais velha e mais arruinada debaixo do aguaceiro. Os mussambês não tinham sido cortados. Apeei-me e entrei, batendo os pés com força, as esporas tinindo. Luiz Padilha dormia na sala principal, numa rede encardida, insensivel á chuva que açoitava as janellas e ás gotteiras que alagavam o chão. Balancei o punho da rede. O ex-director do “Correio de Viçosa” ergueu-se, atordoado:
— Por aqui? Como vai?
— Bem, agradecido.
Sentei-me num banco e apresentei-lhe as letras. Padilha, com um estremecimento de repugnancia, mudou a vista:
— Eu tenho pensado nesse negocio, tenho pensado muito. Até perdi o somno. Hontem amanheci com vontade de lhe apparecer, para combinar. Mas não pude. Semelhante chuva...
— Deixemos a chuva.
— Estou em difficuldades serias. Ia propor uma prorogação com juros accumulados. Recurso não tenho.
— E a fabrica, os arados?
Luiz Padilha respondeu ambiguamente:
— Um inverno deste escolhamba tudo. Recurso não tenho, mas o negocio está garantido. A prorogação...
— Não vale a pena. Vamos liquidar.
— Ora liquidar! Já não lhe disse que não posso? Salvo se quizer acceitar a typographia.
— Que typographia! Você é besta?
— É o que tenho. Cada qual se remedia com o que tem. Devo, não nego, mas como hei de pagar assim de faca no peito? Se me virarem hoje de cabeça para baixo, não cai do bolso um nickel. Estou lizo.
— Isso não são maneiras, Padilha. Olhe que as letras se venceram.
— Mas se não tenho! Hei de furtar? Não posso, está acabado.
— Acabado o que, meu semvergonha! Agora é que vai começar. Tomo-lhe tudo, seu cachorro, deixo-o de camisa e ceroula.
O presidente honorário perpetuo do “Grêmio Literario e Recreativo” assustou-se:
— Tenha paciencia, seu Paulo. Com barulho ninguem se entende. Eu pago. Espere uns dias. A divida só é ruim para quem deve.
— Não espero nem uma hora. Estou falando serio, e você com tolices! Desproposito não! Quer resolver o caso amigavelmente? Faça preço na propriedade.
Luiz Padilha abriu a boca e arregalou os olhos miudos. S. Bernardo era para elle uma coisa inutil, mas de estimação: ali escondia a amargura e a quebradeira, matava passarinhos, tomava banho no riacho e dormia. Dormia demais, porque receava encontrar o Mendonça.
— Faça preço.
— Aqui entre nós, murmurou o desgraçado, sempre desejei conservar a fazenda.
— Para que? S. Bernardo é uma pinoia. Falo como amigo. Sim senhor, como amigo. Não tenciono ver um camarada com a corda no pescoço. Esses bachareis têm fome canina, e se eu mandar o Nogueira tocar fogo no binga, você fica de sacco nas costas. Despesa muita, Padilha. Faça preço.
Debatemos a transacção até o lusco-fusco. Para começar, Luiz Padilha pediu oitenta contos.
— Você está maluco! Seu pae dava isto ao Fidelis por cincoenta. E era caro. Hoje que o engenho cahiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados...
Perdi o folego. Respirei e offereci trinta contos. Elle baixou para setenta e mudámos de conversa. Quando tornámos á barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do ceo que era a ultima palavra. Eu tambem asseverei que não pingava mais um vintem, porque não valia. Mas lancei trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os mesmos embelecos, sem nenhum resultado.
Resolvi discorrer sobre as minhas viagens ao sertão. Depois, com indifferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive modificação para cincoenta e cinco. Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cincoenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fóra o dinheiro gasto com elle, no collegio. Cheguei a ameaçal-o com as mãos. Recuou para cincoenta. Avancei a quarenta e affirmei que estava roubando a mim mesmo. Nesse ponto cada um puxou para o seu lado. Fincapé. Chamei em meu auxilio o Mendonça, que engulia a terra, o official de justiça, a avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida roi a corda:
— Muito por baixo. Pindahiba.
Descontado o que elle me devia, o resto seria dividido em letras. Padilha endoideceu: chorou, entregou-se a Deus e desmanchou o que tinha feito. Viesse o advogado, viesse a justiça, viesse a policia, viesse o diabo. Tomassem tudo. Um fumo para o accordo! Um fumo para a lei!
— Eu me importo com lei? Um fumo!
Tinha meios. Perfeitamente, não andava com a cara para traz. Tinha meios. Ia á tribuna da imprensa, reclamar os seus direitos, protestar contra o esbulho. Affectei commiseração e prometti pagar com dinheiro e com uma casa que possuia na rua. Dez contos. Padilha botou sete contos na casa e quarenta e tres em S. Bernardo. Arranquei-lhe mais dois contos: quarenta e dois pela propriedade e oito pela casa. Arengámos ainda meia hora e findámos o ajuste.
Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo, elle metteu o rabo na ratoeira e assignou a escriptura. Deduzi a divida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cincoenta mil reis. Não tive remorsos.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
